Os Bravos do Mindello | Page 6

Faustina da Fonseca
e caramanch?es.
Entrou pelo postigo aberto no grande port?o de cedro, pesado de trancas e tranquetas, ferrolhos, corredi?as e argol?es, e o cora??o batia-lhe descompassado.
Saccudiu o p�� na banqueta de pedra, de onde subiam as senhoras para as andilhas, e trepou a escada exterior, que come?ava na parede do fundo e cortava em angulo para a da esquerda, receiando uma vertigem, sentindo fugir-lhe a luz dos olhos.
Sentou-se no poial do alpendre, a descan?ar um momento, a dominar o tremor nervoso, e descobriu Maria ao fim da cerca, com a prima D. Josepha da Esperan?a e o primo Jorge.
Inclinou-se, descobriu-se, ella correspondeu n'uma venia exagerada, curvando-se muito, no que foi imitada pelos primos, e depois arrancando o chapeu de palha, rustico, de grandes abas, enfeitado de espigas, papoilas e malmequeres colhidos pela quinta, imitou-o cumprimentando como um homem.
Repetiram as raparigas as zumbaias, e o primo deitava-lhes as tran?as para a frente, ao que, irritadas, respondiam com palmadas e belisc?es.
E quando a creada, de dentro da casa, o convidou a entrar, elle tornou a saudal-as, e as raparigas responderam rindo ��s gargalhadas, fazendo-lhe figas.
Transpoz humilhado a porta de imponentes almofadas; nunca lhe parecera t?o triste o casar?o onde passava horas enfadonhas, junto de um frade tresandando a vinho.
Sabendo os cantos �� casa ia encafuar-se no escriptorio, quando a creada lhe disse que o senhor ainda estava �� meza, e o guiou �� casa de jantar.
--Entra, entra, pequeno--convidou em voz entaramelada o morgado--tu ��s como se fosses da familia, aqui como o mestre Jacintho, por parte de teu av?. Aquillo �� que era um homem, o capit?o Silveira! Gente de outro tempo! Hoje s�� ha fedelhos como tu.
Ergueu pesadamente o corpanzil obeso, cambaleando nas grossas pernas a estoirarem os cal??es de ganga amarella, copiados de D. Jo?o VI, que usava com meia branca e sapatos de fivella de prata.
J�� pelos bofes da camisa, pelo collete e pela casaca, nodoas de vinho affirmavam o abuso da bebida, e a m?o tremula derramou-lhe o copo, que empunhava de p��, virado para Jo?o.
--�� tua, em memoria de teu av?!
Bebeu e tornou a sentar-se, pesadamente, apoiando-se �� borda da meza e �� grande cadeira de bra?os, de coiro negro e pregaria amarella, em que presidia �� cabeceira, na velha tradi??o senhorial.
--Grande homem que elle era!--apoiou mestre Jacintho--sem desfazer em quem est�� presente.
Endireitou o corpo alquebrado, illuminou-se-lhe o olhar, e o velho soldado denunciou-se no cabello �� escovinha, na colleira de coiro negro que no pesco?o escanzelado saia da camisola de linho de pastor, na marca das bexigas que lhe favava a cara encorreada, como passada ao lustre das mochilas.
Tomou com toda a confian?a um copo, bebeu e, sempre de p��, disciplinado at�� a escravid?o, voltou-se para Martinho Vasques:
--O que n��s fizemos n'aquelle Russill?o!
Attingia a phase piegas a embriaguez do morgado, tremia-lhe o bei?o inferior, descahido e inchado, tornavam-se-lhe muito pequeninos os olhos duros, de um azul frio, raiados de vermelho, e o nariz destacava-se-lhe rubro, da c?r de telha do rosto apopletico, onde as sobrancelhas asperas, espessas, unindo-se carrancudas, os longos pellos das ventas e dos ouvidos, punham em occasi?es normaes a marca da rudeza, da selvageria.
--Se n?o fosse teu av? n?o estava eu aqui! Se n?o me tivesse deitado a m?o quando eu ca�� ferido na retirada da Montanha Negra! Devo-lhe a vida a elle e a este velho!
Mas a lingua emperrava-se-lhe, a sensibilidade engasgava-o de todo.
Ancioso sempre de contar fa?anhas, no orgulho profissional, o ex-soldado do Roussillon ergueu as m?os �� altura dos ouvidos, como a pedir que o escutassem, e come?ou n'um bom ar de velhinho, tremendo-lhe o bigode branco em escova:
--Quando aquelles malditos franceses ca��ram sobre n��s, eu, mais o meu capit?o e mais vossa excellencia, senhor morgado, fomos para cima d'elles como le?es, e eram cutilladas de alto a baixo, golpes de rachar de meio a meio...
Ganhava-o pouco a pouco a furia de assassino profissional: passavam-lhe no olhar relampagos sinistros; arrega?avam-se-lhe os bei?os, mostrando os dentes p?dres ainda promptos a morder; crispava-se-lhe a m?o esquerda em f��rma de garra, o pollegar muito desenvolvido, erguido acima dos outros dedos, na amea?a de premir a guela do inimigo; e na m?o direita brilhava-lhe uma faca de meza, brandida com fur?r, como nos assaltos �� arma branca, em que, com as m?os a escorrer em sangue, degolava soldados agarrados ��s pe?as, apertados uns contra os outros, sem espa?o para se defenderem no recanto de uma trincheira. Tinham ��s vezes que abrir-lhe a m?o �� for?a para lhe tirarem a pod?a de jardineiro, a que se soldavam os dedos quando brigava com os cavadores, e renovava-se a li??o do mal; ou quando o vinho lhe obliterava a consciencia de homem grato, generoso, humilde at�� �� servid?o.
Sobresaltado frei Angelico na languidez da digest?o, arrotando empanturrado, flatulento, ergueu-se, arredou o habito pardo de franciscano n'um meneio feminil, adquirido em
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