Os Bravos do Mindello | Page 3

Faustina da Fonseca
ferrugentas ferragens.
Ficou por muito tempo sentado no poial de pedra da janella, a fronte apoiada na m?o esquerda, os dedos entre o cabello castanho anelado, anediando o ligeiro bu?o, os olhos pregados na quinta dos Folhadaes, pensando no que devia fazer.
Ao tocarem matinas na S��, come?ou a preparar-se para sa��r.
Do quintal bateu palmas a tia Dorotheia.
Estava prompto o almo?o, e elle decidido a seguir Maria, se a levassem para Lisboa.
Reconquistou-o ao descer da torre a sentimentalidade do lar, no cheiro do comer, no arrastado dos chinelos das tias, no tinir da lou?a da India, no tlintar dos talheres de prata, no ranger do trabalhado armario de madeira do Brasil, com guarni??es tremidas e remates arrendados.
Deu-lhes os bons dias, ellas beijaram-o e afagaram-o, e quando se sentou na cadeira de espaldar, de onde o pae e o av? presidiam �� grande meza oval, de p��s torneados e parafusos de prata, cujas abas se fechavam para sempre �� medida que a familia se reduzia, esmoreceram-lhe os impetos, esva��u-se-lhe a energia.
Amolentara-o a educa??o mulherenga, creado entre rabos de saias, adormecido com pavorosos contos de lobishomens e almas do outro mundo.
Pobres velhas! Morreriam de d?r se lhes faltasse.
E as ambi??es de viajar, de seguir uma carreira, de ser alguem, iam-se no resignado aniquilamento, na tendencia para a medita??o, de que o haviam adoecido os dias abafadi?os e humidos.
--J�� saes?--perguntou Pulcheria, mirando-o atravez dos oculos de tartaruga.
Dorotheia accrescentou que n?o era dia de li??o, e o dominio das velhas impoz-se-lhe, como sempre, tomando-lhe conta de todos os passos, vigiando-lhe as sa��das e entradas, fazendo-lhe scenas de lagrimas quando voltava tarde ?do caminho da perdi??o!?
N?o resistia, n?o se insurgia, n?o protestava, mas nem por isso deixava de sair e entrar quando lhe parecia, embriagando-se de liberdade, sem pae que o derrancasse nas sovas que humilhavam outros da sua edade, ao recolherem f��ra d'horas.
--Nem que fosse dia de li??o irias hoje ao padre Jeronymo.
Pulcheria, magra e s��cca, nervosa, solteirona, alludia �� chegada do navio de Lisboa, sublinhando com inten??o.
E Dorotheia, viuva, mais prompta �� lagrima, supplicou-lhe:
--N?o te v��s meter em trabalhos.
--N?o se fala sen?o de vingan?as, de pris?es, credo!--apoiou Pulcheria.
Dorotheia, no instincto de dona de casa, abrangeu logo o lado economico das perturba??es:
--Tudo mais caro. Os ovos j�� est?o a quatro por um vintem, e querem uma serrilha por uma gallinha. Os homens do monte fingem ter medo de entrar na cidade, e n?o passam do Desterro onde a?ambarcam a manteiga, os ovos e as gallinhas os revendilh?es, que p?em tudo pela hora da morte, desculpando-se que lhes pediram um horror de dinheiro. A cada m�� noticia que vem de Lisboa, os lojistas enchem-se augmentando os pre?os. Assim tem hoje casas e quintas essa orgulhosa caixeirada que veiu para ahi de tamancos! J�� n?o se pagam f��ros, ha que tempos n?o entram aqui os cestinhos de ovos que nos trazia o capit?o Toledo das Doze, nem os casaes de frangos da Fonte do Bastardo. Para que n?o se acabe a capoeira, a mana tem deitado ovos em ch?co, mas logo na noite da revolta, com os tiros dos soldados do Lob?o contra os milicianos, foi-se uma ninhada inteira, dezasete ovos de gallinhas das Flores que p?em duas vezes por dia! �� o que se ganha com essas fa?anhas dos constitucionaes.
--�� tia!...--interveiu sorrindo.
--Se n?o has-de defendel-os, n?o fosses todo do Juvencio!--commentou Pulcheria, mais directamente ferida pelo g?ro.
Dorotheia censurou, muito sentida:
--Est��s sempre metido na botica a l��r as gazetas, e decerto l�� vaes encafuar-te a saber o que veiu de Lisboa, essa Babilonia, Sodoma e Ghomorra, a corrupta e devassa Lisboa, como pr��ga, acceso em santas iras, fr. Angelico da Immaculada Concei??o de Maria.
--Quando o vinho do morgado lhe sobe �� cabe?a.
Pulcheria reprimiu Jo?o n'um olhar.
--N?o te fica bem o que fazes, nem o que dizes. Fr. Angelico �� muito de casa do senhor morgado dos Folhadaes, o nosso protector. Elles s?o do senhor D. Miguel.
--Est?o no seu direito.
Dorotheia acudiu com a quest?o do dinheiro:
--Lembra-te que elle te d�� quatro patacas por mez pela escriptura??o dos rendeiros; e pelas festas, pelo Espirito Santo, e pelas matan?as manda sempre os seus presentes em salva de prata, com sua toalha de damasco. Teu pae e teu av? foram muito d'aquella casa, e tu mesmo ��s tratado como amigo.
E reparando na distrac??o d'elle:
--N?o comes nada? Grande coisa tens hoje!
Pulcheria observou-o tambem:
--Naturalmente os pedreiros livres est?o falados para a chegada do navio de Lisboa.
Retumbou na cosinha um penoso suspiro, como das almas penadas dos contos, e Jo?o surprehendeu a creada, a velha Maria da Assump??o do Corpo Santo, que lhos contava, movendo os seccos bra?os inchados de veias, os dedos ossudos em esgares de esconjuro, depois ungindo a testa encarquilhada, o nariz acavallado, os bei?os pendentes, mascando a sua maneira especial de se benzer:
Eu me benzo c'os tres cravos Abra?ados n'uma cruz Para
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