Maria, e ha dois annos que não
passavam d'ahi.
Estiveram muito tempo sem falar, no prazer mudo de se contemplarem,
até que João estremeceu á ideia de a perder.
--Teve noticias do primo?--perguntou-lhe de repente, indo direito ao
assumpto, sem preparação.
Ella respondeu indifferente, transportada no brando oscillar da rede:
--Sim. Está bem.
Apparentou desinteresse, mas insistiu:
--Sempre casam?
N'um movimento de contrariedade, que o animou a ir mais longe, disse
Maria:
--Bem sabe que sim.
Ficaria outra vez interrompida a conversação, se elle, animado pelo que
crêra adivinhar, não se arriscasse mais:
--E gosta?
--De quê?
--De casar.
N'um visivel enfado murmurou:
--Sei lá!
Muito nervoso, repetiu:
--Quero dizer se gosta de casar com elle.
Tirou-se da rede que, preoccupado, João deixára parar e n'um encolher
de hombros:
--Se nunca o vi.
Foi lançar-se descontente no banco de pedra, a fronte ensombrada, no
gesto do pae.
Ficou João um momento indeciso, e depois approximou-se vagaroso,
offendido:
--Vejo que não é minha amiga.
--Porquê?
--Fala-me com mau modo...
--Eu?
--Com frieza, com indifferença...
--Para o que te havia de dar hoje!
E como elle se sentasse, succumbido, soltou uma risada, n'um impeto
de volubilidade, e beliscou-o, no seu agreste feitio infantil.
--Isto então é mau modo?
Ergueu-se elle corando, e supplicou:
--Por amor de Deus não brinque commigo!
--Estás amuado?
--Pelo menos agora não graceje, e diga-me só: Gostava de ir para
Lisboa?
Abrangeu n'um olhar a casa, o campo, a vida que levava enclausurada,
e respondeu:
--Isso gostava.
Retorquiu João em voz estrangulada:
--Não se importava então de me deixar?
Irritada pelo interrogatorio, Maria exclamou, sem o fitar:
--Que pergunta essa!
Elle approximou-se, muito commovido:
--Era uma separação para sempre! para sempre!
--Sim, talvez!
E d'olhos no chão encarava agora as consequencias.
Vendo-a impressionada, João aqueceu:
--E não levava pena nenhuma?
N'um repente de sinceridade, Maria accudiu ingenuamente:
--De me separar de ti, sim.
--Mas não tinha ainda pensado em mim!--queixou-se elle, muito
sentido.
--Realmente ainda não pensára.
Começava a sentir-se compromettida, olhava em torno a procurar os
primos.
João deixara-se arrastar pela arrebatadora emoção d'esse momento tanta
vez sonhado, e tanta vez crido impossivel:
--É porque nunca me quiz bem!
Ella via embaciarem-se-lhe os olhos, tremerem-lhe os labios.
Desculpou-se para não o affligir mais:
--Como querias que pensasse em ti, se isto tem sido uma coisa no ar?
--Mas estão preparados para o embarque...
--É certo que o pae anda com isso ha muito. Mas elle faz e diz tantas
coisas sem fundamento, que eu nunca o tive por decidido.
--Nem mesmo o casamento?
--Não pensei a serio em coisa alguma.
E n'um arremesso de creança que os mimos tornaram voluntariosa:
--Mesmo isso do casamento com o primo ha de ser se me agradar.
João estremeceu, desiludido:
--Ah! Então ainda é possivel?
--Só Deus o sabe. Mas se não sympathisar com elle, não ha forças
humanas que me obriguem.
--Quer dizer que ainda póde vir a agradar-se?
--Quem sabe!
Cria-o então possivel? É que nunca sentira por elle nenhuma affeição?
E a custo João comprimiu um soluço, que não lhe passou despercebido.
--Que tens tu?
Bailando-lhe lagrimas nas pestanas, desabafou:
--Ando como um doido! Perco as noites a pensar que não nos tornamos
mais a vêr. Toda a minha vida hei de chorar esta casa...
--Coitado! Faz-te falta o que o pae te dá a ganhar.
Magoou-o a apreciação. Pois não presentia n'elle outro sentimento?
Não interpretára nunca o verdadeiro culto que lhe votava, olhando-a
absorto, como ás imagens.
Pensou ainda em manter-se incomprehendido, em calar essa revelação.
Vinha muito tarde! Não o comprehendera em dois annos de intimidade,
não ia agora corresponder-lhe de repente. Mas revoltou-o vêr
accentuada a situação de dependente.
--Não ia ali por interesse--protestou.--Os seus deixaram-lhe alguma
coisa. Tinha com quê. Era só por ella, para estar ao seu lado, que
acceitava o sacrificio do escriptorio.
Impressionou-a a paixão com que falava.
Ainda em tom de gracejo, mas com a voz um tanto abafada, disse sem
o fitar:
--Querem ver que te deu para me namorares?
Ficou olhando para a areia vermelha. E como elle permanecesse calado,
insistiu, evitando-o sempre:
--Não respondes?
--Fica zangada commigo?--perguntou a medo.
--Não.
--Isso é que fica.
Ella virou-se de repente, e fitou-o com franqueza:
--Zangada porquê?
Intimidou-o essa expressão, que não comprehendia; mas era tarde para
recuar. Muito envergonhado, rendeu-se:
--Pois é verdade.
Maria ergueu-se n'um riso forçado:
--Tu, namorado de mim? Tu, meu fedelho! Ora! Não sabes o que dizes.
Ia afastar-se, mas João supplicou:
--Já que me não ama, diga ao menos que me perdôa!
--Tens medo? Descança, não faço queixa ao pae?
--Não se ria de mim, quero-lhe muito, muito!--soluçou elle.--E quando
soube que a pretendiam casar em Lisboa, chorei de desespero, porque
me costumára a pensar que havia de ser minha mulher.
Ella encarou-o, franzindo as sobrancelhas, como irritada
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