Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo VII | Page 7

Alexandre Herculano
a
tempestade ameaçava submergil-os. Era d'aquelles trances que os
sacerdotes, seus companheiros de riscos e aventuras, se aproveitavam
para os revocar ás sanctas doutrinas da fé, e era ordinariamente então
que n'essas almas rudes achavam accesso o arrependimento e as
verdades da religião.
Desejariamos que a imprensa fosse tambem um pouco similhante aos
bons missionarios do seculo XVI; que nos dias da angustia dissesse
algumas verdades duras aos povos, quando mais não fosse, ao menos
para interromper a monotonia das que diariamente diz aos reis. A
imprensa que vive da publicidade, da publicidade que se estriba na
bolsa do povo, praticaria um acto de devoção mais corajosa, falando
severamente aos seus naturaes patronos, do que dirigindo-se aos
principes, de quem ella depende incomparavelmente menos para existir
e prosperar.
Por isso nós a convidariamos para que, sem distincção de partidos, sem
lhe importar com a diversidade da sua missão politica ou litteraria,
aproveitasse o ensejo de temores que assaltam geralmente os animos,
para insinuar n'estes importantes verdades.
A natureza do flagello que nos opprime, as observações que fizemos
n'uma pequena excursão para o lado de Cintra, nos suscitaram estas
reflexões, a que esperamos associem outras de mais valor as pessoas
competentes. Posto que dominados por uma viva affeição á agricultura,
a essa rainha das industrias, somos apenas curiosos n'esta materia. Ha,
porém, uma certa somma de verdades iniciaes na sciencia que estão ao
alcance de todos os que as buscam, seja como estudo, seja como
curiosidade.

Portugal tem uma agricultura incompleta. Se exceptuarmos o Minho,
podemos dizer que o producto do nosso sólo é exclusivamente
representado pelos cereaes, pelo vinho e pelo azeite. Por importantes,
comtudo, que sejam os dous ultimos, o principal é, como em todos os
paizes, o dos cereaes.
Mas é doutrina incontestavel que para a cultura d'estes poder prosperar
é necessaria a copia de estrumes; que para haver copia d'estes é
necessario gado; que este não existe, ou tem uma existencia precaria
onde não ha pastagens, e estas são sempre miseraveis e insufficientes
n'um paiz onde a intensidade, digamos assim, do systema agricola não
é proporcional á sua _extensão_; onde a arte não ajuda energicamente a
natureza a supprir a alimentação dos animaes.
Portugal não tem creações de gado: queremos dizer, não tem n'este
ramo de industria rural senão o restrictamente necessario para a lavoura,
pelo que respeita a gado grosso; e o seu gado lanigero é pouco
numeroso, imperfeito, e rareado annualmente pelos resultados de um
tractamento quasi selvagem. Porque? Porque ainda não adoptámos a
doutrina fundamental de toda a agricultura judiciosa, a creação dos
animaes n'uma larga escala, nem buscámos ainda os meios para isso
adequados.
As nossas terras mais ferteis produzem de 10 a 15 sementes, e a
producção das mediocres é entre 5 e 8. Tendo a cultura adquirido uma
grande _extensão_, com esta producção acanhada o lavrador acha-se
collocado entre dous extremos deploraveis. Se o anno é mau, a limitada
proporção entre a semente e o producto torna-se ainda mais restricta, e
embora suba o preço do genero, o fabrico absorve quasi a colheita: se o
anno é propicio, a barateza no mercado vem a inutilisar a abundancia, e
o cultivador fica sempre miseravel.
A imperfeição das machinas e dos methodos, o pessimo systema, ou
antes a negação de systema nas rotações, e varias outras causas,
contribuem para este estado violento; mas a causa principal é a
desproporção enorme na distribuição do solo: o homem crê fazer para
si a parte do leão, e engana-se. Espoliando os animaes que o ajudam
nas suas laboriosas tarefas, os animaes que o vestem ou lhe fertilisam

os campos, do quinhão que lhes cabe nos fructos d'estes, torna-se
desgraçado a si no meio de uma abundancia mais apparente que real.
Na Inglaterra, o paiz modelo da agricultura, os productos de um terço,
pelo menos, da terra cultivada pertencem aos animaes domesticos. Nós
talvez não lhes reservamos um centesimo. O erro n'esta parte produz
uma infinidade de factos, que principalmente determinam a falta de
progresso _d'intensidade_ na agricultura nacional.
Um anno pouco favoravel, como o que vae correndo, descobre logo por
diversos modos a nossa situação deploravel.
De que ouvimos principalmente queixar os agricultores, quando os
interrogamos sobre os fataes effeitos d'este estio inesperado, que veio
pesar sobre nós no coração do inverno? De que esse pouco gado que
possuem morrerá á fome. Porque? Porque o lavrador põe quasi
exclusivamente as suas esperanças nas hervagens espontaneas; entrega
á Providencia o cuidado dos seus bois e das suas ovelhas. Esta
confiança nem é prudente, nem religiosa. Deus não deu inutilmente ao
homem a faculdade de reflectir, nem os braços para o trabalho. A
protecção da Providencia não vae até o ponto de supprir o desprezo da
nossa actividade intellectual e material.
Perdemos os poucos gados, que possuimos, quando o inverno
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