Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo VII | Page 4

Alexandre Herculano
Os cimos
das montanhas são as verdadeiras aras de Deus: é lá que oravam as
nações virgens. Sanctificai a vossa religião de patriotismo pelo culto
universal e primitivo: o bosque murmurando com o espirar da aragem é
um hymno ao Ancião dos Dias: que este hymno nos consagre a
memoria ao amor e gratidão de nossos filhos!
Ao lado dos paços monasticos de Mafra, monumento de uma era de
vans grandezas, vai-se hoje alevantando sem ruido o monumento
modesto, mas eloquente e sancto, da idéa progressiva da actualidade.
Ao lado d'essas pedras amontoadas, d'esses torreões gigantes, macissos,
e pesadamente estupidos, serpeam já os prados virentes por veigas e
valles, cobertos ainda ha pouco de abrolhos e urzes. Contrastando com
os lanços de muralhas caiádas da ochre, que amarelleja bestialmente,
como um cordão de ouropel enfiado em diamantes, por entre a côr
severa dos marmores tisnados pelo tempo, vêem-se ao longo verdejar
os pinheirinhos, que coroam as alturas ao norte e oriente d'aquelle
edificio monstruoso, hybrido, e extravagante como uma composição
pseudo-poetica da Phenix-Renascida. As folhas de terra cultivada
dilatam-se pelas chapadas e encostas, várias na côr segundo a altura das
cearas, ou conforme a qualidade do solo, nos sitios onde ainda as
sementeiras não surgem no comêço do germinar. É como um xadrez
enorme, cujas casas se houvessem repartido ao acaso n'um taboleiro
irregular e immenso.
A vontade real fez apparecer o edificio: outras Vontades Reaes fizeram
nascer a granja-modelo. Para a primeira requeria-se ouro e força; para a
segunda intelligencia e amor do paiz. O sceptro foi robusto e potente
quando amontoou aquella penedia lavrada e esculpida: o sceptro é o
symbolo da paz e da beneficencia quando em vez de converter pão em

pedras, converte gandra bravia e esteril em um nobre exemplo que
mostre ao povo onde está a sua derradeira esperança, o progresso da
industria e o amor do trabalho.
Para a maravilhosa inutilidade de D. João V gastaram-se por largos
annos os milhões que de continuo nos entregava a America: o lidar
accumulado de cincoenta mil homens consumiu-se em desbastar e pulir
essas pedras hoje esquecidas, que apenas servem para alimentar por
algumas horas a curiosidade dos que passam. É uma verdade cem vezes
repetida, que o preço de Mafra teria coberto Portugal das melhores
estradas da Europa; mas nem por ser trivial essa verdade deixa de ser
dolorosa. E todavia tal preço era o menos! As maldiccões submissas
dos que foram arrastados de todos os angulos da monarchia, para esta
grande anudúva nacional, e as lagrymas das suas familias, não as pôde
suffocar a adulação cortezã; transsudaram até nós nas paginas da
historia, e cahindo sobre o ataúde dourado do principe que as fez verter,
deixaram a inscripção do seu nome manchada de uma nódoa que o
tempo não gastará.
A vasta e risonha granja que viceja ao lado do negro e carrancudo
edificio não custou uma só mealha dos dinheiros publicos; não
arrancou uma lagryma. Não são maldicções o seu fructo: são bençãos
dos que vivem: serão no futuro bençãos da posteridade.
O convento-palacio, nascido sob manto de púrpura, alegre na sua
juventude e habituado a pompas de longos annos, ahi está, illustre
mendigo, assentado hoje n'um como ermo, onde a vida robusta de
seculos que lhe fadára o fundador, se vai convertendo em antecipada
decrepidez. Inutilmente com a sua grande voz de bronze elle pede que o
abriguem das injurias das estacões. As aguas do céu, filtrando-lhe por
entre os membros, lá os vão lentamente desconjuntando, o sol
cresta-lhe a fronte e faz prosperar os musgos, que lhe arrugam a rija
epiderme: o vento redemoinha atravez das suas janellas mal seguras, e
bramindo n'aquellas solidões do seu recinto, atira ao rosto das estatuas,
aos acanthos dos capiteis, á face polida das paredes de marmore, o pó
que tomou nas azas passando pelas serranias. No meio do estrepitar do
mundo ninguem escuta o gemer do gigante de pedra; ninguem se

lembra de tirar do peculio do estado a mais pequena somma para elle. E
porque? Porque a sua miseria não fala aos corações nem aos
entendimentos. Memorias gloriosas? Não as ha lá. Utilidade? Para que
serve essa pedreira immensa?
A granja, porém, de Mafra nem teme as aguas do céu, nem os raios
creadores do sol: povôa os seus agros outeiros de pinhaes, a cujo abrigo
zombará em breve da furia dos ventos. Não vae pedir soccorros á
munificencia publica: util já aos pequenos e humildes, sê-lo-ha tambem
algum dia a quem a fez nascer, util em proveitos materiaes, e, o que
mais vale, em fructos de verdadeira gloria.
Ha quatro annos apenas, que os muros da cêrca ou tapada de Mafra,
estirando-se como serpe monstruosa por tres leguas, atravez de valles e
outeiros, encerravam um vasto maninho coberto de sarças rasteiras,
onde raro se
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