Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo V | Page 8

Alexandre Herculano
se constituiam essas formas politicas dos reinados seguintes que resumbram em toda a legisla??o posterior, e a que, talvez, possamos chamar meio termo entre o absolutismo e o despotismo, como a organisa??o social portugueza antes das c?rtes de 1481 se póde também considerar como um meio termo entre o absolutismo e a monarchia representativa.
Substituida, portanto, a agricultura, que era do povo, pelo commercio exclusivo, que era da cor?a, e extinctas as tradi??es feudaes na nova compila??o Manuelina, a idade media morrera, com o seu systema de luctas e resistencias, e come?ara esse seculo XVI, cujo caracter essencial em politica foi a unidade monarchica. Este phenomeno explica o novo aspecto que tomou a historia e o apparecimento de uma litteratura cortezan e paceira, que visivelmente se distingue nos poetas mais modernos do cancioneiro, nas obras latinas que por esse tempo appareceram, principalmente nas de Cataldo Siculo, e nos autos do Aristophanes portuguez Gil-Vicente, compostos para alegrar as horas de tedio nos pa?os de D. Manuel. A chronica tomou logo o sabor do elogio historico, e Garcia de Rezende, velho cortez?o, escreveu a vida de D. Jo?o II debaixo dos tectos dos sumptuosos pa?os da Ribeira. A este pobre homem n?o cabe, todavia, a gloria da inven??o d'aquelle genero historico: Ruy de Pina foi o seu inventor. A Chronica de D. Jo?o II escripta por este foi o modelo ou, antes, o original da de Garcia de Rezende, que apenas lhe accrescentou alguns dictos e feitos do seu heroe, algumas anecdotas desenxabidas e triviaes de antecamara, em que n?o esqueceram as acontecidas com o proprio auctor. Garcia de Rezende n?o fez sen?o aperfei?oar a chronica individual e tornal-a, ainda mais que Ruy de Pina, uma biographia real. E que outra fórma podia ter a historia n'uma epocha em que a organisa??o social tinha sumido o povo, a nobreza, e ainda o clero, debaixo do throno do monarcha?
Seria uma das compara??es mais curiosas a do caracter historico da Chronica de D. Jo?o I por Fern?o Lopes com o da Chronica de D. Jo?o II por Garcia de Rezende, se ao mesmo tempo se comparasse o estado da sociedade portugueza no meado do seculo XV com o em que se achava no principio do XVI. Esta compara??o nos parece serviria para explicar as formulas historicas pelas politicas, e vice-versa estas por aquellas.
Que distancia espantosa n?o ha, com effeito, entre o grande poema de Lopes e a mesquinha collec??o de historietas de Garcia de Rezende, onde apenas avultam algumas paginas com o supplicio de um nobre, o assassinio de outro, e o mysterio de um rei que morre, ao que parece; envenenado? Que distancia espantosa de um cadafalso, de um punhal, e de uma ta?a de veneno, ao cerco de Lisboa, à batalha d'Aljubarrota, ao baquear de Ceuta? No livro de Garcia de Rezende vê-se o aspecto triste, e a vida de agonia, e o sorrir for?ado de um rei sem familia, rodeado de cortez?os, cujos nomes pela maior parte se resolvem em fumo com o morrer de seu senhor, a quem seguem os ginetes de Fern?o Martins, os bésteiros e espingardeiros da guarda, n?o para pelejarem com estranhos, mas para o defenderem contra os odios de seus naturaes. Ahi o vulto real abrange quasi os horizontes do quadro, e só lá no fundo, mal desenhadas e indistinctas, se enxergam as personagens historicas d'aquella epocha, e as multid?es agitadas ou tranquillas a um volver d'olhos do monarcha, mas nullas tanto em um como em outro caso. Na chronica de Fern?o Lopes ha, pelo contrario, a historia de uma gera??o: é um quadro immenso de muitas figuras no primeiro plano. Nos degráus do throno de D. Jo?o I est?o assentados guerreiros e sabedores, e monges e clerigos, e povo que tumultua e brada com vóz de gigante--patria! Ao pé da imagem homerica de Nunalvrez vê-se a fronte serena e sancta do arcebispo de Braga, e a face meditabunda e enrugada de Jo?o das Regras, e os vultos terriveis do Ajax portuguez Mem Rodrigues, e do esfor?adissimo Martim Vasques, e de tantos outros cavalleiros a quem difficilmente sobrepuja o rei popular, o Mestre de Aviz. O chronista faz-vos acompanhar as multid?es quando rugem amotinadas pelas ruas e pra?as; guia-vos aos campos de batalha onde se d?o e recebem golpes temerosos; abre-vos as portas dos pa?os ao celebrar das c?rtes, ao discutir dos conselhos; arrasta-vos aos templos onde tr?a a voz do monge eloquente; lan?a-vos, emfim, no existir dos tempos antigos, e embriagando-vos com o perfume da idade media, e deslumbrando-vos com o brilho da epocha mais gloriosa da historia d'esta nossa boa terra portugueza, evoca inteiro o passado, e rasgando-lhe o sudario em que jaz, com o sopro do genio dá alma, e vida, e linguagem ao que era pó, e morte, e silencio.
Em Ruy de Pina
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