Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo V | Page 5

Alexandre Herculano
do conde D. Pedro de Menezes.
Documentos d'aquelle tempo provam D. Affonso V fizera grande estima??o de Gomes Eannes. Morava este em umas casas d'el-rei á porta do pa?o de Lisboa; tinha uma ten?a de doze mil reaes brancos; e fez-se-lhe mercê, em 1467, de uma capella que vagara para a cor?a, gra?a esta que, como observa o abbade Corrêa da Serra, era n'aquelles tempos assaz extraordinaria. Doou-lhe, tambem, el-rei umas casas em Lisboa, do que se acha memoria no livro 3.^o dos Misticos. Antes d'isto, porém, Gomes Eannes era homem abastado, segundo se colhe de outros documentos coevos.
ácerca d'este chronista se conserva ainda uma lembran?a curiosa no Archivo da Torre do Tombo. Em 1461 uma pelliteira viuva e rica, chamada Joanna Eannes, o adoptou por filho, constituindo-o seu herdeiro. O já citado abbade Corrêa nota, com raz?o, que tal adop??o de um homem nobilitado por seus cargos e pela qualidade de cavalleiro, feita por uma plebea, era inteiramente opposta ás idêas do seculo XV, devendo-se por isso suspeitar que Azurara foi d'aquellas pessoas, para quem o respeito ao dinheiro é o principal de todos os respeitos.
S?o incertissimas todas as datas relativas á vida de Gomes Eannes: apenas se póde dizer que vivera pelo meado do seculo XV. A maior parte das memorias que d'elle fallam n?o mencionam nem a epocha do seu nascimento, nem a da sua morte. Algumas ha que dizem f?ra nomeado chronista em 1459: ignoramos se existe ainda a carta de tal nomea??o; mas d'isso duvidamos. O que se póde affirmar é que Azurara acabou uma das suas chronicas (a do conde D. Pedro) em 1463, porque elle proprio o diz. Antes d'esta compozera a da tomada de Ceuta, que serve de terceira parte á de D. Jo?o I escripta pelo immortal Fern?o Lopes; e depois d'ella a de D. Duarte de Menezes. Estas s?o as tres obras, que com certeza se podem attribuir a Azurara. Quer, todavia, Dami?o de Goes que na Chronica d'el-rei D. Duarte, attribuida vulgarmente a Ruy de Pina, e cuja melhor parte elle julga de Fern?o Lopes, houvesse tambem alguma cousa de Gomes Eannes.
Apesar da estima??o e respeito que merecera Fern?o Lopes aos seus contemporaneos, parece que o seu immediato successor lhe levou n'isso conhecida vantagem, posto que muito inferior lhe fosse em merito. Azurara, tendo de escrever sobre cousas de Africa, passou áquellas partes, e lá fez larga demora para conhecer miudamente os logares e circumstancias das fa?anhas que tinha de narrar. Estando alli, recebeu a celebre carta de D. Affonso V, que anda impressa no principio da Chronica de D. Duarte de Menezes. Este documento prova qu?o bella era a alma d'aquelle monarcha, a quem podemos sem receio chamar o ultimo rei cavalheiro, e cuja honrada memoria teem pretendido escurecer aquelles que só em seu filho encontram um grande homem. Vê-se nesta carta que D. Affonso entendia que uma penna vale bem um sceptro, e o engenho um throno. De irm?o para irm?o n?o houvera mais affavel e affectuosa linguagem, e mais generosas anima??es e mercês. Bem nos pêsa que n?o seja possivel, pela extens?o d'esse documento, o lan?al-o n'este logar; n?o para exemplo de reis, mas de quem mais do que elles carece de t?o formosa li??o, neste seculo que se diz allumiado, e em que ha homens que em nome da patria votam miseria e fome para àquelles que mais bem merécem.
Do merecimento litterario de Gomes Eannes de Azurara diremos em breves palavras o que entendemos. Pode-se de algum modo comparar ao italiano Alfieri, posto que pare?a pouco exacta qualquer compara??o entre um auctor de chronicas e um poeta dramatico. E todavia muito ha em um que do outro se possa dizer: ambos chegaram á idade viril sem possuirem os rudimentos sequer das boas letras: nos escriptos de ambos apparece o resultado d'esta falta de educa??o litteraria: ha em um e outro certa inflexibilidade feroz e ausencia inteira d'aquellas gra?as de estylo que nascem do cora??o amaciado desde a infancia pela cultiva??o do espirito: as concep??es nascem-lhes do entendimento, como Minerva da cabe?a de Jupiter, cubertas, por assim dizer, de um arnez de ferro. Louva-se em Azurara, e de louvar talvez é, a sinceridade bravia, com que lan?a em rosto aos heroes, cujas fa?anhas escreve, os defeitos que tiveram, os erros e culpas em que cairam: n'isto se parece tambem, de certo modo, com Alfieri. Mas nós preferimos o systema de Froissant e Fern?o Lopes: para cada um dos seus heroes havia n'estas almas generosas um typo ideal a que procuravam assemelhal-os, engrandecendo-os: e por ventura que mais proficua é assim a historia ao genero humano. Para acabarmos um parallelo, que poderiamos levar mais longe, notaremos a tendencia dos dois escriptores, que collocámos em frente um do outro, para philosophar trivialidades, e ostentar elegancias rhetoricas e erudi??es suadas
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