Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IX | Page 5

Alexandre Herculano
da eloquencia é persuadir; para isto
não só é necessario mover os affectos, mas tambem obrigar a razão. O
usar d'este meio, nervo principal da oratoria entre as nações civilizadas,

seria ridiculo perante um auditorio christão. O incrédulo não vai ouvir
sermões, e o orador que empregasse uma logica severa para provar a
conveniencia da moral do christianismo, a quem d'isso está de antemão
convencido, obraria com tanta impropriedade, como se o missionario
diante de homens de diversa crença buscasse tão sómente mover os
affectos sem falar á razão.
O exemplo de dois grandes homens parece oppor-se ao que temos
acabado de dizer. São elles Bourdalone e Bossuet: o primeiro
empregando a severidade do raciocinio, o segundo tacteando todas as
cordas do sentimento, excitando todos os terrores, todas as esperanças
da imaginação, e ambos considerados como grandes modelos. Mas de
que são elles modelos? É, justamente, d'essa eloquencia imperfeita,
cujo vicio se contém na sua propria natureza. Com effeito, Bourdalone
não preencheu, nos discursos em que se lançou no abysmo dos
mysterios, o objecto da arte: esta dirige-se á vontade, pela acção; e a
defesa metaphysica bem que eloquente dos dogmas christãos não
requer acção alguma. Bossuet está no caso contrario: para que as suas
orações tenham effeito é necessaria a fé. O homem indifferente em
materias de religião, e que não possuir gosto bastante para avaliar seu
merecimento, dormirá tranquillamente á leitura de qualquer d'ellas, em
quanto uma philippica ou olynthia de Demosthenes fará sempre
impressão em todo o homem que tiver uma patria, uma fortuna a perder.
Sabemos quanto nos pódem oppor sobre estes dois oradores, e sobre a
oratoria sagrada em geral; mas, não sendo possivel o entrar aqui numa
questão bastante vasta que estas reflexões não comportam,
lembraremos só aos leitores que nós consideramos os panegyricos e os
sermões de controversia como alheios do pulpito; que Bourdalone, de
todos os oradores sacros o que mais sentiu a necessidade dos
raciocinios como meio da eloquencia, nos seus panegyricos fugia
constantemente para a moral, o que nos faz crer que elle a considerava
o objecto da sua arte como acima dissemos. Em ultimo logar
transcreveremos uma cita da tentativa sobre a eloquencia do pulpito
pelo abbade Maury, obra a mais acreditada entre as d'esta natureza:
J'avoue, diz elle, _qu'il est très-rare de pouvoir suivre cette marche
didactique dans nos chaires, où les discussions morales ne sont jamais
problématiques, et où la conscience, qui ne ment jamais, ne saurait

contester la vérité à ses remords_. O que entra justamente na ordem de
nossas idéas, tanto sobre o objecto como sobre o defeito constitutivo da
eloquencia sagrada.
Voltando ao nosso país, na mesma eloquencia do pulpito, a unica em
Portugal cultivada, só um orador deixou pela estampa monumentos
dignos de exame, se attendermos á fama popular que para seu auctor
grangearam: já se vê que falamos do P. Macedo. Como orador sagrado,
Macedo deveu a popularidade de que gozou a um falso brilho no fundo
das idéas, e sobre tudo a essa instrucção perfunctoria que começa a
invadir a capital e que é mais damnosa ás letras do que a ignorancia.
Sem vislumbres da sublimidade de Bossuet, sem a uncção de Fenelon,
sem a profundeza de Bourdalone, sem a nobre e evangelica
simplicidade de Paiva d'Andrade, ganhou seu renome com os ouropeis
de Seneca; mas tal renome, se ainda soar na posteridade, não será para
as suas cinzas um bafejo consolador de gloria.
Porém não é a eloquencia sagrada que deve hoje chamar a nossa
attenção: ella tem sido o luxo da religião, e nós desejamos vê-la
substituida por meios mais conducentes a fazer prosperar esta. A bella e
sublime moral do evangelho não precisa dos soccorros da arte de
Demosthenes e Cicero; e a religião practica d'um clero virtuoso, seria a
homilia mais eloquente para insinuar a moral do Crucificado.
Antes de passar avante occorreremos a um reparo que farão os leitores:
o de não falarmos sobre a eloquéncia desenvolvida nas côrtes da nossa
primeira epocha de liberdade, que fórma uma excepção de quanto
dissemos sobre a eloquencia portuguesa do XIX.^o seculo. Tivemos
para isso razões, e talvez a principal seja o quão longe nos levaria o
exame de alguns discursos alli pronunciados; entretanto diremos por
honra da nossa patria que então appareceram mui grandes homens, e
que desejariamos ver publicar uma escolha das opiniões e relatorios
então ventilados, á maneira do que se fez em França das orações dos
representantes nacionaes desde o principio da revolução.
É, portanto, a educar homens que ventilem dignamente as questoes de
interesse publico nas camaras legislativas, ou que defendam a
innocencia e persigam o crime nos tribunaes já publicos, que o estudo e

ensino d'esta parte da litteratura se deve dedicar: é assim que nós
fariamos da essencia d'estes dois generos de oratoria o objecto
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