á
quietação da intelligencia, que, no outono da vida, é em nós como o
prenuncio da completa, da eterna paz. Para vencer esta enfermidade dos
espiritos cançados e gastos, cumpre que surja nelles um incitamento
poderoso, uma necessidade instante. Foi, porém, este incitamento ou
esta necessidade que, a final, nasceu para mim, justamente das
condições da vida rural.
Para o velho que vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos
por entre as collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na existencia
uma condição que todos os annos lhe prostra o animo por alguns mezes,
doença moral, mancha negra da vida rustica, facil de evitar nas cidades.
É o tedio das longas noites de inverno; das horas estereis em que o peso
do silencio e da soledade cai com duplicada força sobre o espirito. Para
o velho do ermo, nesses intervallos da vida exterior, a corrente
impetuosa do tempo parece chegar de subito a pégo dormente e
espraiar-se pela sua superficie. A leitura raramente o acaricia, porque
os livros novos são raros. A decima visão da mesma idéa, vestida do
seu decimo trajo, repelle-o, não o distrahe. As convicções ardentes, as
alegrias das illuminações subitas, as coleras e indignações que inspiram
e que, na mocidade e nos annos viris, enchem a cella do estudo de
turbulencias interiores, de arrebatamentos indomaveis, de debates
inaudiveis, de lagrymas não sentidas, de amargo sorrir, cousas são que
se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da existencia.
Desfallece-lhe o animo, mal tenta embrenhar-se na selva das cogitações,
engolfar-se nas ondas dos pensamentos, que, em melhor idade, lhe
roubavam á consciencia os ruidos longinquos e confusos das multidões,
e aquella especie de zumbido obscuro que ha no silencio profundo, e as
passadas tenebrosas da noite, e o surgir e o galgar do sol ao zenith,
emquanto a penna inspirada arfava, deslisando sobre o papel,
semelhante á véla branca da bateirinha, que, ao refrescar do vento, vai e
vem de margem a margem, atravez da ria. Não: para o velho não ha a
febre da alma que devora o tempo. Sente-o gotejar no passado, como os
suores da terra que cáhem, lagryma após lagryma, pela claraboia de
galeria deserta na mina abandonada. É verdade que a natureza
compensa o esmorecer e passar do vigor e da actividade intellectual
com a propria somnolencia do espirito, voluptuosidade da velhice,
ameno e dourado pôr-do-sol, que se refrange no espectro da sepultura
já vizinha e o illumina suavemente. Mas o dormitar do entendimento,
para ser deleitoso enleio, exige o movimento externo e as singelas
occupações e cuidados da vida campestre. Sem isso, e é isso que falta
muitas vezes nas interminaveis noites de inverno, a inercia da
intelligencia, que vagueia no indefinito sem o norte da realidade, vai-se
convertendo pouco a pouco em intoleravel tormento; tormento no qual
ha, por fim, o que quer que seja da céllula circular e esmeradamente
branqueiada, onde o grande criminoso é entregue, sósinho, á euménide
da propria consciencia. N'esta extremidade, por mais somnolenta e
obscurecida que esteja a mente, por mais que ella ame o repouso, o
trabalho do espirito, ainda o mais arido, é preferivel, cem vezes
preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo.
Foi por isto que comecei a ajunctar os disjecta membra de uma grande
parte do meu passado intellectual; a accrescentar, a cortar, a corrigir, a
completar. Vencido o primeiro inverno, vi desapparecerem os marcos
negros juncto dos quaes cumpria que longamente me assentasse ao
cabo de cada um dos poucos estadios que ainda me restam a transitar
pela estrada da vida. Que esta confissão ingenua sirva para ser
absolvido da especie da correria que, apesar dos mais firmes propositos,
faço, ainda uma vez, na republica das letras.
Os escriptos aqui reunidos, os quaes, na sua maior parte, foram
inspirados por impressões momentaneas, perderam o interesse que lhes
provinha das circumstancias que os provocaram; mas, ainda assim,
podem ficar como marcos milliarios que ajudem a assignalar as luctas e
o progresso das idéas em Portugal no decurso de mais de trinta annos
que as datas d'esses escriptos abrangem. Naquellas luctas o auctor dos
seguintes opusculos teve largo quinhão, e se, como é possivel, nem
sempre a razão esteve da sua parte, esteve-o sempre a convicção. É do
que lhe parece hão-de dar testemunho a propria contextura e o proprio
estylo dessas composições, que não vinham só da intelligencia, que
vinham muitas vezes tambem do coração. A demasiada vivacidade, a
talvez exaggerada energia, com que frequentemente ahi são expostas e
defendidas taes ou taes ideas e combatidas outras, revelam a indole
impetuosa mas sincera de quem escreveu essas paginas. Foi, porventura,
este o melhor titulo do auctor á benevolencia publica largamente
manifestada; benevolencia que encontrou ainda em muitos que estavam
longe de commungar com elle nas doutrinas para as quaes buscava ou
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