o delicto.
NÉRO.
É certo.
TIGELLINO.
Tenha cada um a paga merecida; ella a de ré, tu a de justiceiro, e o
podes ser sem perigo.
NÉRO.
Tens razão no que dizes; faze, pois, o que resolveste e sem demora.
SCENA IV.
NÉRO, TIGELLINO E SENECA.
SENECA.
Senhor, já Octavia transpôz os umbraes de teu palacio; se é infausta ou
grata a noticia que te trago, não sei. Ninguem quiz disputar-me a
preferencia em dar-te esta nova; o que me parece triste presagio.
NÉRO.
Vai, Tigellino, executa as minhas ordens, e tu volta pelo mesmo
caminho por onde vieste; vai ao encontro de Octavia e dize-lhe que
aqui estou só e que a espero tambem só.
SCENA V.
NÉRO.
É assaz culpada Octavia; posso duvidar de seus crimes? Lamento só
que não fosse eu o primeiro a quem occorresse a idéa de accusa-la. Será
possivel que Néro precise aprender com outrem os meios de derrubar
seus inimigos? Mas approxima-se o dia em que, para livrar-me de
quantos aborreço, bastar-me ha fazer um gesto do alto do meu throno.
SCENA VI.
NÉRO, OCTAVIA.
OCTAVIA.
Por entre os horrores de uma noite tenebrosa, rodeada de soldados
armados, sou arrastada a este mesmo palacio, de onde, ha dois mezes,
fui expellida á viva força. Ser-me-ha licito perguntar ao meu senhor a
razão desta mudança?
NÉRO.
Para altos fins nossos paes ligárão-nos pelo laço do casamento desde os
mais tenros annos. Sempre porém, tuas palavras e tuas acções
contrariárão a minha vontade; tolerei tudo isto por tempo longo de mais;
e ainda o supportaria, se ao menos me houvesses dado real
descendencia, numerosa e bella, que me servisse de consolo a tantos
desgostos. Debalde o esperei: eras planta esteril; o throno ficava sem
herdeiros por culpa tua, e o doce nome de pai me era negado; por isso
te repudiei.
OCTAVIA.
Fizeste bem. Se é certo que encontraste outra esposa, que mais feliz do
que eu fui, póde dar-te numerosos filhos a quem ames e assim tornar-te
alegre a vida. Outra que te ame tanto como eu, bem sei que não
encontraste ainda, nem encontrarás jámais. Mas que fiz eu? Oppuz-me
por ventura á tua vontade? Vendo-te nos braços de outra, chorei, é certo,
e choro ainda; mas ouvio alguem de mim jámais palavras de censura,
ou apenas foi meu pranto silencioso, meus gemidos e suspiros abafados
pelo respeito?
NÉRO.
Tens muita doçura nos labios, mas não tanta no coração; adevinha-se
em tuas palavras o fél occulto; mal disfarças o odio que tens a Poppéa,
bem como a ambiciosa recordação de pretendidos direitos.
OCTAVIA.
Oh! podesses esquecer, como eu esqueço, esses meus direitos assaz
legitimos pois que soffro por elles tantas desgraças!... O odio e o furor
brilhão em teus olhares!... Misera! Bem conheço que me odeias mais
do que pudera um marido odiar consorte esteril. Infeliz, tanto mais te
offendi, tanto mais te amei! Mas o que te pedi eu? O que te peço hoje?
apenas uma vida obscura, solitaria e liberdade para chorar!...
NÉRO.
E eu, certo de que te contentarias com essa existencia obscura, t'a havia
concedido; mas depois...
OCTAVIA.
Mas depois te arrependeste e tiveste remorsos de não me haveres
tornado bastante infeliz. Quizeste que eu fosse testemunha de tuas
novas affeições; quizeste tornar-me escrava de tua nova esposa,
quizeste que eu fosse ludibrio do mundo e objecto de desprezo para tua
côrte. Aqui estou, obediente ao gesto do meu senhor; o que devo agora
fazer? Ordena. Mas na tua mesma côrte não me poderás tornar
inteiramente infeliz, se a minha desgraça te der alguma alegria.
Responde-me, estás satisfeito? Reina a tranquillidade em tua alma?
Entre os braços da nova esposa gozas do somno calmo que tiras aos
outros? Esta Poppéa, a quem não privaste de um irmão, torna-te por
ventura mais feliz do que eu o fiz?
NÉRO.
Nunca soubeste avaliar o coração do senhor do mundo; sabe-o Poppéa.
OCTAVIA.
A Poppéa agrada o esplendor do throno, para o qual ella não nasceu; a
mim agradas-me tu só. Não tentes comparar o meu amor ao della.
Possue ella o teu affecto, mas só eu o merecia.
NÉRO.
Não, não podes amar-me.
OCTAVIA.
Dize antes que o não devêra; mas pelo teu não julgueis do meu coração.
Bem sei que o meu nascimento me privará eternamente do teu amor;
bem sei que tua imagem manchada com o sangue de meus parentes não
devêra ser acolhida em meu coração, mas a força do destino obriga. E
se eu me esqueço de meu irmão e de meu pai, mortos por ti, como
ousas accusar-me em nome desse irmão desse pai?
NÉRO.
O crime de que te accuso é o que commetteste com Eucéro vil.
OCTAVIA.
Com Eucéro!... eu?...
NÉRO.
Sim, é elle o amante digno de ti.
OCTAVIA.
Ah! justo céo! tu o
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