O Mandarim | Page 8

José Maria Eça de Queiroz
a contemplar, em extasis, o Nababo enfastiado!
��s vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos occupados da Reparti??o. Entrava em casa; e encerrado na livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e encadernado em marroquim, aparava uma penna de pato, e ficava horas lan?ando sobre folhas do meu querido Tojal d'outr'ora: ?Ill.^mo e Exc.^mo Snr.--Tenho a honra de participar a V. Exc.a... Tenho a honra de passar ��s m?os de V. Exc.a!...?.
Ao come?o da noite um criado, para annunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, �� moda gothica, uma harmonia solemne. Eu erguia-me e ia comer, magestoso e solitario. Uma popula?a de lacaios, de libr��s de s��da negra, servia, n'um silencio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do pre?o de joias: toda a mesa era um esplendor de fl?res, luzes, crystaes, scintilla??es d'oiro:--e enrolando-se pelas pyramides de fructos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma nevoa subtil, um tedio inenarravel...
Depois, apopletico, atirava-me para o fundo do coup��--e l�� ia ��s Janellas Verdes onde nutria, n'um jardim de serralho, entre requintes musulmanos, um viveiro de f��meas: revestiam-me d'uma tunica de s��da fresca e perfumada,--e eu abandonava-me a delirios abominaveis... Traziam-me semi-morto para casa, ao primeiro alvor da manh?: fazia machinalmente o meu signal da cruz, e d'ahi a pouco roncava de ventre ao ar, livido e com um suor frio, como um Tiberio exhausto.
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Entretanto Lisboa rojava-se aos meus p��s. O pateo do palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janellas da galeria, eu via l�� branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luz?r o suor da Plebe: todos vinham supplicar, de labio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participa??o no meu oiro. ��s vezes, consentia em receber algum velho de titulo historico:--elle adiantava-se pela sala, quasi ro?ando o tapete com os cabellos brancos, tartamudeando adula??es; e immediatamente, espalmando sobre o peito a m?o de fortes v��as onde corria um sangue de tres seculos, offerecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.
Todos os cidad?os me traziam presentes como a um Idolo sobre o altar--uns Odes votivas, outros o meu monogramma bordado a cabello, alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciencia. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher--era logo ao outro dia uma carta em que a creatura, esposa ou prostituta, me offertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacencias da lascivia.
Os jornalistas esporeavam a imagina??o para achar adjectivos dignos da minha grandeza; fui o sublime snr. Theodoro, cheguei a ser o celeste snr. Theodoro; ent?o, desvairada, a Gazeta das Locaes chamou-me o extra-celeste snr. Theodoro! Diante de mim nenhuma cabe?a ficou j��mais coberta--ou usasse a cor?a ou o c?co. Todos os dias me era offerecida uma Presidencia de Ministerio ou uma Direc??o de Confraria. Recusei sempre, com nojo.
Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da Monarchia. O Figaro, cortez?o, em cada numero fallou de mim, preferindo-me a Henrique V; o grotesco immortal, que assigna Saint-Genest, dirigiu-me apostrophes convulsivas, pedindo-me para salvar a Fran?a; e foi ent?o que as Illustra??es estrangeiras publicaram, a c?res, as scenas do meu viver. Recebi de todas as princezas da Europa enveloppes, com s��llos heraldicos, expondo-me, por photographias, por documentos, a f��rma dos seus corpos e a antiguidade das suas genealogias. Duas pilherias que soltei durante esse anno foram telegraphadas ao Universo pelos fios da Agencia Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse fino entendimento que se chama Todo-o-Mundo. Quando o meu intestino se alliviava com estampido--a Humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz emprestimos aos Reis, subsidiei guerras civis--e fui caloteado por todas as Republicas latinas que orlaram o golfo do Mexico.
E eu, no entanto, vivia triste...
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Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma vis?o: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito d'oiro--l�� jazia a figura bojuda, de rabicho negro e tunica amarella, com o seu papagaio nos bra?os... Era o Mandarim Ti-Chin-F��! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava.
Ent?o cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no silencio do quarto, onde as v��las dos candelabros davam tons ensaguentados aos damascos vermelhos:
--Preciso matar este morto!
E todavia, n?o era esta impertinencia d'um velho phantasma pan?udo, accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas colchas, que me fazia saber mal a vida.
O horror supremo consistia na id��a, que se me crav��ra ent?o no espirito como um ferro inarrancavel--que eu tinha assassinado um velho!
N?o f?ra com uma corda em torno da garganta �� moda musulmana; nem com veneno n'um calix de vinho de Syracusa, �� maneira italiana da Renascen?a; nem com algum dos methodos classicos, que na historia das Monarchias teem recebido
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