O Mandarim | Page 7

José Maria Eça de Queiroz
impaciente: e, de chap��o sobre o olho, encarei friamente a turba.
Foi ent?o que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu Director Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em arco e o chap��o comprimentador ro?ando as lages. Era o habito da dependencia: os meus milh?es n?o me tinham dado ainda a verticalidade �� espinha...
Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle, muito tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres horas; e o sol apressado j�� descia, levando comsigo o meu primeiro dia de opulencia... Ent?o, coura?ado de libras, corri a saciar-me!
Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e egoista, com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno, lic?res de todas as communidades religiosas--como para matar uma s��de de trinta annos! Mas s�� me fartei de Collares. Depois, cambaleando, arrastei-me para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das persianas; e achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-n��, sentindo o corpo e a alma como esva��rem-se, dissolverem-se n'aquelle ambiente abafado onde errava um cheiro de p�� de arroz, de f��mea e de punch...
Quando voltei �� travessa da Concei??o, as janellas do meu quarto estavam fechadas, e a v��la expirava, com fogachos lividos, no casti?al de lat?o. Ent?o ao chegar junto �� cama, vi isto: estirada de trav��s, sobre a coberta, jazia uma figura bojuda, de Mandarim fulminado, vestida de s��da amarella, com um grande rabicho solto; e entre os bra?os como morto tambem, tinha um papagaio de papel!
Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;--o que estava agora sobre o leito era um velho paletot alvadio.

III
Ent?o come?ou a minha vida de milionario. Deixei bem depressa a casa da Madame Marques--que, desde que me sab��a rico, me tratava todos os dias a arroz d?ce, e ella mesma me servia, com o seu vestido de s��da dos domingos. Comprei, habitei o palacete amarello, ao Loreto: as magnificencias da minha installa??o s?o bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da Illustra??o Franceza. Tornou-se famoso na Europa o meu leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a barra recoberta de laminas d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde ondeam, bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada, suspensa no interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um luar de ver?o.
Os meus primeiros mezes ricos, n?o o occulto, passei-os a amar--a amar com o sincero bater de cora??o d'um pagem inexperiente. Tinha-a visto, como n'uma pagina de novella, regando os seus craveiros �� varanda: chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a Buenos-Ayres, n'uma casinha casta recoberta de trepadeiras; e lembrava-me pela gra?a e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem creado de mais fino e fragil--Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de Santarem.
Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus p��s c?r de jaspe. Todas as manh?s lhe alastrava o rega?o de notas de vinte mil reis: ella repellia-as primeiro com um rubor,--depois, ao guardal-as na gaveta, chamava-me o seu anjo T��t��.
Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso tapete syrio, at�� ao seu boudoir--ella estava escrevendo, muito enlevada, de dedinho no ar: ao v��r-me, toda tremula, toda pallida, escondeu o papel que tinha o seu monogramma. Eu arranquei-lh'o, n'um ciume insensato. Era a carta, a carta costumada, a carta necessaria, a carta que desde a velha antiguidade a mulher sempre escreve; come?ava por meu idolatrado--e era para um alferes da visinhan?a...
Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta venenosa. Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no olhar azul o reflexo dos c��os atravessados: de cima do meu oiro, deixei cahir sobre a Innocencia, o Pudor, e outras idealisa??es funestas acida gargalhada de Mephistopheles: e organisei friamente uma existencia animal, grandiosa e cynica.
* * * * *
Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore c?r de rosa, onde os perfumes derramados davam �� agua um tom opaco de leite: depo?s pagens tenros, de m?o macia, fr��ccionavam-me com o ceremonial de quem celebra um culto: e embrulhado n'um robe-de-chambre de s��da da India, atrav��s da galeria, dando aqui e al��m um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife �� ingleza, servido em S��vres, azul e oiro.
O resto da manh?, se havia calor, passava-o sobre coxins de setim c?r de perola, n'um boudoir em que a mobilia era de porcelana fina de Dresde e as fl?res faziam um jardim d'Armida; ahi, saboreava o Diario de Noticiais, em quanto lindas raparigas vestidas �� japoneza refrescavam o ar, agitando leques de plumas.
De tarde ia dar uma volta a p��, at�� ao Pote das Almas: era a hora mais pesada do dia: encostado �� bengala, arrastando as pernas molles, abria bocejos de fera saciada,---e a turba abjecta parava
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 28
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.