O Livro de Cesário Verde | Page 5

Cesario Verde
lhe respondia:--?Escuta-me. Conforme??Tu vibras os crystaes da bocca musical,??Vae-nos minando o tempo, o tempo--o cancro enorme??Que te ha de corromper o corpo de vestal.
?E eu calmamente sei, na d?r que me amortalha,??Que a tua cabecinha ornada á Rabagas,??A pouco e pouco ha de ir tornando-se grisalha??E em breve ao quente sol e ao gaz alvejará!
?E eu que daria um rei por cada teu suspiro,??Eu que amo a mocidade e as modas futeis, vans,??Eu morro de pezar, talvez, porque prefiro??O teu cabelo escuro ás veneraveis cans!?
HUMILHA??ES?(De todo o cora??o--a Silva Pinto)
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quasi Job,?Acceito os seus desdens, seus odios idolatro-os;?E espero-a nos sal?es dos principaes theatros,
Todas as noites, ignorado e só.
Lá can?a-me o ranger da seda, a orchestra, o gaz;?As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,?E emquanto v?o passando as cortezans e os brilhos,
Eu analyso as pe?as no cartaz.
Na representa??o d'um drama de Feuillet,?Eu aguradava, junto à porta, na penumbra,?Quando a mulher nervosa e van que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
Como ella marcha! Lembra um magnetisador.?Ro?avam no veludo as guarni??es das rendas;?E, muito embora tu, burguez, me n?o entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
Sim! Por n?o podia abandonal-a em paz!?ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéa?De vel-a aproximar, sentado na platéa,
De tel a n'um binoculo mordaz!
Eu occultava o fraque usado nos bot?es;?Cada contratador dizia em voz rouquenha:?--Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fóra as ova??es.
Que desvanecimento! A perola do Tom!?As outras ao pé d'ella imitam as bonecas;?Tem menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetaculos do Som.
Ao mesmo tempo, eu n?o deixava de a abranger;?Vi-a subir, direita, a larga escadaria?E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o ch?o se abrisse para me abater.
Saí; mas ao sair senti-me atropellar.?Era um municipal sobre um cavallo. A guarda?Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De subito, fanhosa, infecta, rota, má,?P?z-se na minha frente uma velhinha suja,?E disse-me, piscando os olhos de coruja:?--Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
RESPONSO
I
N'um castello deserto e solitario,?Toda de preto, ás horas silenciosas,?Envolve-se nas pregas d'um sudario?E chora como as grandes criminosas.
Podesse eu ser o len?o de Bruxellas?Em que ella esconde as lagrimas singellas.
II
E loura como as doces escocezas,?D'uma belleza ideal, quasi indecisa;?Circumda-se de luto e de tristezas?E excede a melancolica Artemisa.
Fosse eu os seus vestidos afogados?E havia de escutar-lhe os seus peccados.
III
Alta noite, os planetas argentados?Deslisam um olhar macio e vago?Nos seus olhos de pranto marejados?E nas aguas mansissimas do lago
Podesse eu ser a lua, a lua terna,?E faria que a noite fosse eterna.
IV
E os abutres e os corvos fazem giros?De roda das ameias e dos pégos,?E nas salas resoam uns suspiros?Dolentes como as supplicas dos cegos.
Fosse eu aquellas aves de pilhagem?E cercara-lhe a fronte, em homenagem.
V
E ella vaga nas praias rumorosas,?Triste como as rainhas desthronadas,?A contemplar as gondolas airosas,?Que passam, a giorno illuminadas.
Podesse eu ser o rude gondoleiro?E alli é que fizera o meu cruzeiro.
VI
De dia, entre os veludos e entre as sedas,?Murmurando palavras afflictivas,?Vagueia nas umbrosas alamedas?E acarinha, de leve, as sensitivas.
Fosse eu aquellas arvores frondosas?E prendera-lhe as roupas vaporosas.
VII
Ou domina, a rezar, no pavimento?Da capella onde outr'ora se ouviu missa,?A musica dulcissima do vento?E o sussuro do mar, que s'espregui?a.
Podesse eu ser o mar e os meus desejos?Eram ir borrifar-lhe os pés, com beijos.
VIII
E ás horas do crepusculo saudosas,?Nos parques com tapetes cultivados,?Quando ella passa curvam-se amorosas?As estatuas dos seus antepassados.
Fosse eu tambem granito e a minha vida?Era vêl-a a chorar arrependida.
IX
No palacio isolado como um monge,?Erram as velhas almas dos precítos,?E nas noites de inverno ouvem-se ao longe?Os lamentos dos naufragos afflictos.
Podesse eu ter tambem uma procella?E as lentas agonias ao pé d'ella!
X
E ás lages, no silencio dos mosteiros,?Ella conta o seu drama negregado,?E o vasto carmesim dos resposteiros?Ondula como um mar ensanguentado.
Fossem aquellas mil tape?arias?Nossas mortalhas quentes e sombrias.
XI
E assim passa, chorando, as noites bellas,?Sonhando nos tristes sonhos doloridos,?E a reflectir nas gothicas janellas?As estrellas dos ceus desconhecidos.
Podesse eu ir sonhar tambem comtigo?E ter as mesmas pedras no jazigo!
XII
Mergulha-se em angustias lacrimosas?Nos ermos d'um castello abandonado,?E as proximas florestas tenebrosas?Repercutem um choro amargurado.
Unissemos, nós dois, as nossas covas,?ó doce castell? das minhas trovas!
II
NATURAES
CONTRARIEDADES
Eu hoje estou cruel, frenetico, exigente;?Nem posso tolerar os livros mais bizarros.?Incrivel! Já fumei tres massos de cigarros
Consecutivamente.
Doe-me a cabe?a. Abafo uns desesperos mudos:?Tanta deprava??o nos usos, nos costumes!?Amo, insensatamente, os acidos, os gumes
E os angulos agudos.
Sentei-me á secretaria. Alli defronte móra?Uma infeliz, sem, peito, os dois pulm?es doentes;?Soffre de falta d'ar, morreram-lhe os parentes
E engomma para fóra.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!?T?o livida! O doutor deixou-a. Mortifica.?Lidando sempre! E deve a conta á botica!
Mal ganha para sopas...
O obstaculo estimula, torna-nos perversos;?Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,?Por causa d'um jornal me regeitar, ha dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta?No fundo da gaveta. O que produz o estudo??Mais d'uma redac??o,
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