Novelas do Minho | Page 3

Camilo Castelo Branco
foste fado, ó fado que já não és!
Cito de memoria, pouco fiel n'estas coisas conspicuas.
Da convivencia d'aquelles rapazes ficou lhe um verniz epigrammatico.
Flagellava os padres do seu sitio com chalaças, era mais fino nos
remoques ao cirurgião, e fizera mudar de terra o boticario, com quem

se inimisára inexoravelmente desde que elle, por causa d'umas eleições
municipaes, solemnisadas a arrocho, o doestou, no Periodico dos
Pobres, de atheu e carbonario. Ainda havia carbonarios e atheus
n'aquelle tempo. Hoje ha mais fé... e petroleo.
Alvaro d'Abreu tinha a saude athletica e vermelha que eu desejo aos
meus leitores. Viera a Caldas porque ali namorara, no anno anterior, a
morgada nova, sua prima em quarto gráo; visitou-a em Athey nas festas
de Natal e Paschoa, e combinou então encontrarem-se em Vizella.
Outro:
João Pacheco, do Arco de Baulhe, morgado de Valle-Escuro. Um gentil
rapaz de vinte e quatro annos, educado em Lisboa, onde tinha nascido,
quando seu pae commandava uma brigada realista. Era orfão desde
1832. Aos vinte annos emancipara-se, e retirou se para a provincia,
onde possuia fartos bens e tias solteiras que muito lhe queriam, e o
indemnisaram dos mimos que não gosara na infancia.
Asseveravam-lhe as tias que elle descendia de Duarte Pacheco
Pereira--o Achilles lusitano...
--Que morreu no hospital...--atalhava o moço.
--A infamia a quem toca...--emendava a sr.^a D. Izabel Pacheco, freira
benedictina bastante instruida.
E, abrindo os Lusiadas, apontada dois versos em que Luiz de Camões
vingava Duarte Pacheco da injuriosa ingratidão de D. Manuel:
Isto fazem os reis cuja vontade Manda mais que a justiça e que a
verdade
João Pacheco sorria-se.
A freira azedava com o desdem do sobrinho, e repetia-lhe a ode
pyndarica de Antonio Diniz, consagrada a seu avô. Era, porém, quasi
ridiculo o enthusiasmo antigo da filha de S. Bento, declamando com

teatral gesticulação a farfalhuda estrophe:
Cem paráos torveados D'onde por bocas mil brota Mavorte Entre
horrorosos brados, Em fogo, em fumo, em sangue envolta a morte,
Zargunchos, frechas, que em choveiros vôam; Elephantas bramindo a
terra atrôam; Neptuno da batalha ao som horrendo No fundo mar se
espanta;
Nos eixos muda a terra está tremendo, Mas nada o grande coração
quebranta.
--O que eu collijo d'esses versos--dizia o soda transportada senhora--é
que o bravo Duarte Pacheco espatifou muito indio, fez espadanar muito
sangue de povos que defendiam o seu lar, e nunca vieram aqui attacar o
nosso. Ora, a providencia castigou o Achilles lusitano, baixando o a
tragar na barra dos desvalidos a miseria do rei de Calecut, arrojado por
elle do throno á indigencia.
Com poucos mais traços, está bosquejado o perfil ideal de João
Pacheco. Completal-o-hão os successos occorrentes n'esta historia.
A sexta pessoa do grupo, que povoava o cinceiral do Vizella, era um
dos Saint-Preux portuenses, o modelo acabado da belleza varonil, já
passante dos trinta e cinco annos, cançado, mas fingindo que amava
sempre porque era deveras querido. Não sei se elle, á imitação do
marselhez Luiz Gauffredi, pactuara com o diabo dar-lhe a alma em
troca das mulheres que soprasse; o que sei é que as damas que elle quiz,
sopradas ou não, amaram-no.[1] Parte d'essas estava nas Caldas a abrir
o appetite enfarado ou a diluir os empaches da nutrição rija. As
meninas anemicas e chloroticas dos trovistas da cidade, em 1851,
pertenciam ainda á embryologia; assim como os bardos, que
actualmente lhes receitam boi e vinho do Porto, fermentavam no ventre
da Idea... com i grande.
José de Almeida, o Don Juan do Porto, bem que reconhecesse os
amavios corporeos da morgada de Athey, chegara á idade em que o
espirito, ganhando entojo ás carnalidades, entra a namorar-se da belleza
moral. Almeida zombava dos tregeitos, do palavriado, das relamborias

denguices de Irene. Quem o attrahia áquelle grupo era João Pacheco; e
quem attrahia João Pacheco era o abbade de Santa Eulalia com o
engôdo das anecdotas, com a sympathia das bôas tolices, e a prodigiosa
arte de exorcisar a tentação do suicidio das pessoas que penam em
Vizella quinze dias de junho. José de Almeida me dizia a mim...
A mim?... a um homem muito diverso que ha vinte e quatro annos tinha
o meu nome, e esse tal era o ultimo do grupo.
* * * * *
Dizia João Pacheco a José de Almeida uma vez:
--Este Abreu, se não tivesse cartas de bacharel, seria um homem regular;
porém, como não advoga, nem faz leis, nem as interpreta, quer á força
mostrar que a formatura lhe deu alguma distincção. Faz espirito. Traz
sempre comsigo as pilherias requentadas que forrageou em Coimbra, e
não perde lanço de as desfechar contra o abbade ou contra mim, se D.
Irene lh'as pode victoriar com o sorriso parvoeirão. Eu já lhe disse que
os seus gracejos incommodavam o abbade e me não lisongeavam a
mim.
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