Miniaturas Romanticas | Page 6

Sebastião de Magalhães Lima
o tornou em completa demencia, nem t?o pouco as for?as physicas se lhe esgotaram.
Passeou a vista pelas mezas da casa, e apenas avistou dois meliantes ainda profundamente encarni?ados no delirio do jogo.
Levantou-se, e foi direito a elles. Apontou a uma carta, e perdeu; apontou a outra, e tornou a perder; �� terceira, entisicando-se-lhe a bol?a, soltou um derradeiro e sentido suspiro!
J�� n?o havia mais recursos: sa��u, pois, do botequim.
A aurora come?ava, ent?o, a roxear o oriente com o clar?o da sua divina poesia. Ao longe, a cotovia annunciava um dia ameno e bello. A brisa m��rna do crepusculo bafejava de mansinho, ao brando contacto de solitaria violeta, que se espregui?ava indolentemente, qual indiana lasciva na sua rede de pennas!
Alvaro nem sequer se commoveu com aquelle espectaculo.
Pobre desgra?ado! como seria elle capaz de poder comprehender essa epopeia gigante, que t?o evidentemente nos revela a existencia d'um Deus omnipotente e justo, n'aquelle estado deploravel e asphyxiante?!
Passou, como se tudo lhe f?ra indifferente.
Subiu, depois, uma longa e sinuosa escada, que conduzia a uma agua furtada, cuja era a sua residencia. Veio abrir-lhe a porta uma joven mulher pallida e alta, de fei??es distinctas e ainda delicadas, mas j�� quasi extinctas pelo marulhar tenebroso do g��lo da desventura!
Uma luz ba?a allumiava o humilde aposento. Pela fresta da janella apenas se coava um tenue raio de luz, que contrastava singularmente com a pobreza e nudez d'aquelle exiguo e acanhado recinto.
Mas quem era aquella mulher? Que vida era a sua? Que fazia ella ali?
Aquella mulher era uma d'essas creaturas, como muitas, que Deus arrojou ao mundo, para justa puni??o do homem, e opprobrio eterno da humanidade.
Filha de paes abastados, aquella mulher, teria sido rica, outr'ora, nimiamente formosa e sublimemente ditosa, se a fatalidade do destino, peior que a fatalidade das paix?es, n?o tivesse vindo macular para sempre a sua reputa??o ephemera.
Paulina amara Alvaro ardentemente; mas o traidor, longe de sanctificar aquelle amor com uma uni?o licita, prostituiu torpemente a victima indefesa de seus nefastos designios, sempre indifferente ��s suas agonias e ��s suas d?res.
Paulina aproximou-se do seu amante, com o intuito de o beijar docemente, segundo o seu costume, quando elle a arremessou brutalmente ao meio da casa:
--Afasta-te, mulher vil! Para sempre! N?o me tornes a beijar! N?o queiras, ainda mais, manchar a minha fronte com o teu osculo impudico e pestilente. Julgara-te uma mulher, e n?o passas d'uma desgra?ada! Reputei-te um anjo, e ��s um demonio! Cri, por algum tempo, na sanctidade do teu amor, e illudi-me, illudi-me sim, vibora dolosa e maldicta!
Triste verdade!...
Ah! Ah! Ah!
Neste ponto, Alvaro soltou uma d'essas gargalhadas estridentes e medonhas, que causam horror at�� ao maior her��e d'este mundo. Depois ca��u sobre um canap�� esfarrapado e sedi?o, que elle herdara de seus paes, em tempos mais ditosos, e ao lado do qual existia uma mezinha tosca e ligeira, onde se accommodava invariavelmente uma botija de genebra, que elle collou aos labios, tractando de a sorver diligentemente.
Paulina, embrulhada n'um roup?o r?to e velho, com as suas longas madeixas em completo desalinho, foi-se arrastando insensivelmente no p�� da sua ignominia, at�� chegar ao p�� de Alvaro, cuja m?o ainda tentou beijar mais uma vez.
Elle, quasi adormecido, soffreou aquelle golpe como lh'o permittiam as suas debeis for?as.
Paulina ajoelhou perante o seu algoz. Mal come?ara, por��m, a introduzir suas pequeninas e niveas m?os por entre os avelludados cabellos de seu amante, prodigalizando-lhe toda a especie de blandicias e carinho, de que s�� uma mulher �� capaz,--Alvaro, como que tomado de subito desespero, levantou-se, e, tomando do bra?o d'aquella pobre mulher, exclamou:
--Paulina, �� preciso que tu me entendas, d'uma vez para sempre. Eu n?o te amo, nunca te amei, nem te poderei j��mais amar. Has de ser desgra?ada toda a tua vida, porque nunca me soubeste comprehender,--porque nunca foste capaz de imaginar que, em logar d'um amante, s�� tinhas diante de ti um leproso vil, a quem a sociedade contaminou com o seu halito corrompido, para depois o deixar triste e solitario neste theatro ignobil da humana corrup??o. Tu, que foste boa e meiga para comigo, procura outro mais digno de ti. N?o faltar?o homens, que te saibam estimar. Vae, vae correr mundo; e deixa-me, deixa-me por uma vez!...
Neste instante, desabotoou-se, por acaso, o casaco de Alvaro, e de seu seio ca��u um leque, que lhe havia sido dado poucas horas antes por aquella joven e espirituosa Emilia, de quem j�� nos occup��mos no principio d'esta narrativa.
Paulina empallideceu terrivelmente, e ia para apanhar aquelle objecto, t?o caro e saudoso, de seu amante, quando elle se interpoz �� sua vontade, collocando-se de modo a impedir a realisa??o, bramindo rancoroso e medonho. Os olhos chispavam-lhe sangue, e a bocca espumava-lhe de satanica raiva.
Tambem n?o articulou nem mais uma palavra. Apanhou o leque com soffreguid?o inaudita; abriu-o, e come?ou a reparar n'uma borboleta que alli se achava gravada.
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 34
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.