invenção do seu cerebro. É por isso que vemos hoje um Pharaó
montado em corcel andaluz, mastodontes em correrias desenfreadas
pelas florestas virgens da Europa contemporanea, condores pousados
graciosamente nos calices das rosas, e... _il resto no lo dico_.
Mas Camões viu os continentes e as ilhas, os oceanos e as montanhas, e
por isso é o grande pintor da natureza; Camões foi soldado, e por isso é
o veridico narrador das batalhas; Camões serviu cargos do estado, e por
isso dos seus versos se póde tirar um tratado completo de politica;
Camões, finalmente, navegou muito, e por isso é, como diz Alexandre
de Humboldt, um grande pintor maritimo.
Espiritos elevados e intelligencias altamente illustradas tem já
considerado o nosso Poeta debaixo de alguns d'estes pontos de vista.
Parece-nos, comtudo, que ainda se não explorou sufficientemente um
dos veios mais ricos d'essa riquissima mina. Tentaremos nós, em rapido
esboço, mostrar como na sua palheta de multiplices côres tinha Camões
algumas das mais brilhantes e apropriadas para descrever o mar e pintar
os homens que n'elle vivem. Procuraremos mostrar como Camões foi
um marinheiro, mas um marinheiro de alma e coração divinamente
inspirados; procuraremos demonstrar como lhe assenta bem o epitheto
de _Naval Poet_, que lhe deu um escriptor inglez, e teremos assim
justificado o titulo que demos a este despretencioso trabalho.
II
Para poder tratar da sciencia e da arte do marinheiro com a provada
exatidão e superior proficiencia, que se observam nas suas obras, devia
Camões ter tido um longo tirocinio maritimo, pois só com largas
viagens sobre o mar poderia elle adquirir esses conhecimentos tão
variados.
Se ainda hoje, com tantos tratados e livros ao alcance de todas as
intelligencias, é comtudo difficil, a quem não viu o mar e os seus
trabalhos, fazer d'elles uma idéa aproximadamente exacta, muito mais
acontecia isso no tempo do Poeta, quando a geographia, a astronomia e
a nautica eram sciencias, alem de atrasadas, possuidas por poucos, de
modo que a maioria das pessoas, ainda mesmo das classes illustradas,
faziam de tudo o que dizia respeito á navegação, idéa vaga e por vezes
muito afastada da verdade, confundindo-se no seu espirito os
verdadeiros perigos do mar com os horrores e medos imaginarios, que
eram ainda restos da tradição do Mar Tenebroso. Os escriptores, que
não tinham navegado, ao descreverem scenas maritimas, serviam-se de
um padrão uniforme, successivamente copiado ou imitado, e em que a
natureza muitas vezes tinha pouca parte. E realmente, como poderá
descrever com exactidão uma tempestade quem nunca tenha visto
alguma? Como poderá descrever com verdade o alvoroço sentido pelo
marinheiro ao avistar terra, depois da longa e trabalhosa navegação,
aquelle que nunca saiu do remanso da patria e do conchego da familia?
Mas o nosso Poeta foi n'esse ponto mais feliz que nenhum outro,
porque navegou e viajou muito, e de si podia dizer o que poz na bôca
do Gama:
Os casos vi, que os rudos marinheiros,
Que tem por mestra a longa
experiencia,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as
cousas só pela apparencia;
E que os que tem juizos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por sciencia
Vêm do mundo os segredos
escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.
(Lus. v, 17.)
Antes, pois, de vermos como o Poeta tratou das cousas do mar,
recordemos da sua biographia o que diga respeito ás navegações que
fez.
Luiz de Camões embarcou pela primeira vez pelos annos de 1546. Este
primeiro embarque parece ter sido um castigo motivado ou pelos seus
malfadados amores com D. Catharina d'Athayde ou por qualquer outra
causa, talvez um duello dos muitos que lhe originava o seu genio
ardente e cavalheiroso, que lhe valeu dos companheiros e quiçá dos
emulos a alcunha de Trinca-fortes. Certo é que partiu para Ceuta, e em
tão boa ou má hora que, logo n'essa viagem, teve um recontro com
corsarios barbarescos, suppondo-se que foi então que perdeu o olho
direito.
Voltou de Africa em 1549 em companhia de D. Affonso de Noronha,
que tinha sido capitão de Ceuta, e que, chegado a Lisboa, foi nomeado
vice-rei da India por D. João III. Vinha o Poeta já com tenção de se
alistar para a India, o que fez com effeito em 1550 na _nau dos
Burgalezes_, que pertencia á armada em que D. Affonso de Noronha
devia seguir viagem. Não partiu, porém, n'essa occasião, mas sim tres
annos depois, a 24 de março de 1553, na armada que levava por
capitão-mór Fernão Alvares Cabral. Era tal o seu desejo de partir, ou
para deixar a patria onde o perseguiam os desgostos, ou para ver se
melhorava de fortuna e podia realisar as aspirações do seu coração, que
trocou com outro _homem d'armas_, e embarcou na capitaina, que era a
nau _S. Bento_.
N'esta viagem experimentou Camões os duros trabalhos do mar, porque
a
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