Luar de Janeiro | Page 4

Augusto Gil
Jesus baixou do céu,
Poz-se a brincar com o capuz do frade.
Perto, uma bica d'agua murmurante
Juntava o seu murmurio ao dos
pinhaes.
Os rouxinoes ouviam-se distante.
O luar, mais alto,
illuminava mais.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.

Ella trazia ao hombro a cantarinha,
Elle trazia... o coração no peito.
Sem suspeitarem de que alguem os visse,
Trocaram beijos ao luar
tranquillo.
O menino, porém, ouviu e disse:
--Oh Frei Antonio, o
que foi aquillo?...
O santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,

Mentiu numa voz doce como o mel:
--Não sei que fosse. Eu cá não
ouvi nada...
Uma risada limpida, sonora,
Vibrou com timbres d'oiro no caminho.

--Ouviste, Frei Antonio? Ouviste agora?
--Ouvi, Senhor, ouvi. É

um passarinho...
--Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...

E o pobre Santo Antonio de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por
fim,
Córado como as véstes dos cardeaes,
Achou esta sahida redemptora:

--Se o Menino Jesus pregunta mais,
...Queixo-me á sua mãe, Nossa
Senhora!
Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquelle amôr sem
casamento,
Pegou-lhe ao collo e acrescentou: Jesus,
São horas...

--E abalaram p'r'ó convento.
UM GRÃO DE INCENSO
_A Lourenço Cayolla_
Entraste com ar cançado
Numa egreja fria e triste.
Ajoelhei-me ao
teu lado
--E nem ao menos me viste...
Ficaste a rezar alli,
Naquella immensa tristeza.
Rezei tambem, mas
a ti,
--Que aos anjos tambem se reza...
Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta.
Como é que tens tanta
fé
--E a caridade te falta?...
A MÁSCARA
A Santos Tavares
Por acaso, parou na minha frente,
De loup e dóminó de seda negra,

Uma mulher d'olhar resplandecente
E mento breve de figura grega.
Tomei-lhe as mãos esguias entre as minhas...
E os seus olhos doirados reluziram
Como os punhaes ao sol, quando

se tiram,
Aguçados e frios, das bainhas.
--Máscara, quem és tu?
--E tu quem és?...
--Um homem que te viu e te deseja...
E um riso vago, de desdem talvez,
Floriu na sua bocca de cereja.
Ergui-lhe as mãos asceticas. Beijei-as.
Em vibrações entrecortadas, sêccas,
Tiniam taças irisadas, cheias.
E
uma phrase d'amôr, toda em colcheias,
Vibrava nas arcadas das
rebecas.
Levei-a para o vão duma janella.
--Máscara, quem és tu?
--Para que insistes?...
Outro riso subiu da bocca della
Aos olhos enigmaticos e tristes.
E descobriu a face. No capuz
Emoldurou-se um rosto lindo e sério.
Que differente porém do que eu supuz!
A gente nunca deve entrar com luz
Nos divinos recantos do
misterio...
IN PROMPTUM PASTORAL
A Amadeu de Freitas
«Muito vence quem se vence
Muito diz quem não diz tudo,
Porque
a um discreto pertence
A tempo fazer-se mudo.»
(Copla do Infante D. Luiz.)

Sob este céu creador
De manhã vergiliana,
Apetece ser pastor
E
tocar frauta de cana;
Não, pastor d'autos d'amor,
D'eclogas frias e velhas,
Mas
verdadeiro pastor
De verdadeiras ovelhas...
Não conhecer o talento
Nem nada do que se ensina.
Esta dôr do
entendimento
É peor do que se imagina...
Guiar o meu coração
Num ingenuo christianismo.
Esta civilisação

É cheia de pessimismo...
Comer pão negro, pão duro,
Beber o leite das peáras.
Pão de centeio
é escuro,
--Mas põe as almas ás claras...
Amar alguma pastora
Com palavras e com obras.
Estas senhoras
d'agora
São mais falsas do que as cóbras...
E vêr crear com carinho,
Com cuidados infinitos,
Á companheira,
um filhinho...
E ás ovelhas, borreguitos...
MEDITAÇÕES SOBRE THEMAS DO ECCLESIASTES
I
A Celestino Steffanina
Vaidade de vaidades, disse o Ecclesiastes: vaidade de vaidades, e tudo
vaidade.
(Capit. I, v. 1).
Semeador de iniquidades,
Porque é que mandas sobre os teus eguaes?!

O mando o que é? Vaidade de vaidades,
Fumo que ao desfazer-se
engrossa mais...
Oh minha vista o que é que foi que viste
Cá neste mundo impiedoso e

rudo?
_Que só a vaidade existe_
--Em todos nós, e em tudo!...
II
A Israel Anahory
Todas as coisas são difficeis; o homem não as póde explicar com
palavras. Os olhos não se fartam de vêr nem o ouvido se enche de
escutar.
(Capit. I, v. 8).
Palavras são palavras... Nada dizem.
Teias d'aranha que jámais
impedem
Que as ideias se escapem e deslizem...
Nescios os homens são quando procedem
Como quem a verdade
sempre traja
E nunca della se encontrou despido...
Difficil é... o que mais simples haja
--Quanto mais o que fôr mais
escondido!...
Para que uma verdade vá julgar,
Para que um sentimento vá sentir,

Olhos: não vos canceis nunca d'olhar
E vós, ouvidos, não deixeis
d'ouvir.
Mas por fim
Nem assim...
O mais profundo pensamento
É sempre insubsistente e aerio,
Por
que a todo o momento
--Se perde no misterio...
III
_A José Barbosa_
Que é o que foi? É o mesmo que hade ser. Que é o que se fez? É o

mesmo que o que se hade fazer.
Que é o que foi?
--O mesmo que hade ser...
A vida é como o passo egual dum boi
Que vem dos campos ao
anoitecer;
Com o seu lento e resignado aspeito,
Andou um passo, e
logo um outro dá.
_Tudo quanto foi feito
De novo se fará_...
IV
A Ladislau Patricio
Os olhos do sabio estão na sua cabeça: o insensato anda em trevas: e
aprendi que era uma e mesma a morte dum e doutro.
(Capit. II, v.
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