Livro de Mágoas | Page 3

Florbela Espanca
apaga!
Vem sempre rastejando como a
vaga...
Vem sempre perguntando. «O que te resta?...»
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser
granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
*Amiga*
AMIGA
Deixa-me ser a tua amiga, Amor;
A tua amiga só, já que não queres

Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as
mulheres.
Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O
que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for
Bendito sejas
tu por m'o dizeres!
Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois
nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas
mãos,
Os beijos que sonhei p'rá minha boca!...
*Desejos vãos*
DESEJOS VÃOS
Eu qu'ria ser o Mar d'altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!

Eu qu'ria ser a pedra que não pensa,
A Pedra do caminho, rude e
forte!
Eu qu'ria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem
sorte!
Eu qu'ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e
até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como
quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na
agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
*Pior velhice*
PIOR VELHICE
Sou velha e triste. Nunca o alvorecer
Dum riso são andou na minha
boca!
Gritando que me acudam, em voz rouca,
Eu, náufraga da
Vida, ando a morrer!
A Vida que ao nascer enfeita e touca
D'alvas rosas, a fronte da
mulher,
Na minha fronte mística de louca
Martírios só poisou a
emurchecer!
E dizem que sou nova... A mocidade
Estará só, então, na nossa idade,

Ou está em nós e em nosso peito mora?!...

Tenho a pior velhice, a que é mais triste,
Aquela onde nem sequer
existe
Lembrança de ter sido nova... outrora...
*A um livro*
A UM LIVRO
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste.

Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que
me deste.
Estranho livro aquele que escreveste
Artista da saudade e do sofrer!

Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem
poder dizer!
Leio-o e folheio, assim, toda a minh'alma!
O livro que me deste é
meu e salma
As orações que choro e rio e canto!...
Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes!... Quem
soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!...
*Alma perdida*
ALMA PERDIDA
Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou
perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez,
alguém que se finou!
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor,
suavemente...
Talvez sejas a alma, alma doente
D'alguém que quis
amar e nunca amou!
Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te,
adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a
minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!...
*De joelhos*
DE JOELHOS
«Bendita seja a Mãe que te gerou.»
Bendito o leite que te fez crescer.

Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, p'ra te adormecer!
Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer...

Bendita seja a lua que inundou
De luz, a terra, só para te ver...
Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti
ajoelharem,
Numa grande paixão fervente e louca!
E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,

Bendito seja o beijo dessa boca!!
*Languidez*
LANGUIDEZ
Tardes da minha terra, doce encanto,
Tardes duma pureza d'açucenas,

Tardes de sonho, as tardes de novenas,
Tardes de Portugal, as
tardes d'Anto.
Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto!...
Horas benditas, leves
como penas,
Horas de fumo e cinza, horas serenas,
Minhas horas de
dor em que eu sou santo!
Fecho as pálpebras roxas, quase pretas,
Que poisam sobre duas
violetas,
Asas leves cansadas de voar...
E a minha boca tem uns beijos mudos...
E as minhas mãos, uns
pálidos veludos,
Traçam gestos de sonho pelo ar...

*Para quê?!*
PARA QUÊ?!
Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!

E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o
coração!
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,

Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo
chão!...
Beijos d'amor! P'ra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são
realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só acredita neles quem é louca!
Beijos d'amor que vão de boca em
boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...
*Ao vento*
AO VENTO
O vento passa a rir, torna a passar,
Em gargalhadas ásp'ras de
demente;
E esta minh'alma trágica e doente
Não sabe se há-de rir,
se há-de chorar!
Vento de voz tristonha, voz plangente,
Vento que ris de mim, sempre
a troçar,
Vento que ris do mundo e do amar,
A tua voz tortura toda
a gente!...
Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!
Desabafa essa
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