deve dar testemunho da promptidão da tua justiça. Elevei ao
throno de Deus a ultima oração, e estou apparelhado para morrer, eu o
hypocrita, eu o infame, que pretendia lançar sementes de odio entre ti e
teu virtuoso filho. Kalifa, quando a justiça espera não são boas horas
para meditar ou dormir."
Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre ironica e insolente,
e ao redor dos labios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.
A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman das suas tenebrosas
cogitações. Poz-se em pé. As lagrymas haviam corrido por aquellas
faces, mas estavam enxutas. A procella de paixões encontradas
tumultuava lá dentro; mas o gesto do principe dos crentes recobrára
apparente serenidade. Descendo do throno pegou na mão mirrada de
Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:
"Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem acceito ao
propheta, perdoa as injurias de um insensato! Cria ser superior á
fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas
tu esquece-lo! Agora estou tranquillo ... bem tranquillo ... Abdallah, o
traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz designio. Alguém lh'o
inspirou: alguem verteu naquelle animo soberbo as vans e criminosas
esperanças de subir ao throno por cima do meu cadaver e do de
Al-hakem. Não desejo sabe-lo para o absolver; porque elle já não póde
evitar o destino fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pae fui
kalifa, e Deus confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça.
Morrerá; mas hão-de acompanha-lo todos os que o precipitaram no
abysmo."
"Ainda ha pouco te disse--replicou Al-gafir--o que pôde inventar o ódio
que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indifferença, e até
da submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu offendeste no seu
amor proprio de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um homem
sem engenho nem saber, quiz provar-te que ao menos possuia o talento
de conspirador. Foi elle que preparou este terrivel successo. Has-de
confessar que se houve com destreza. Só n'uma cousa não: em
pretender associar-me aos seus designios. Associar-me? ... não digo
bem ... fazer-me seu instrumento ... A mim! ... Queria que eu te
apontasse ao povo como um impio pelas tuas allianças com os amires
infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou a confiar plenamente
na minha lealdade. Tomei a meu cargo as mensagens aos rebeldes do
oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o alliado dos christãos, o antigo kaid de
Chantaryin. Foi assim que pude colligir estas provas de conspiração.
Loucos! as suas esperanças eram a miragem do deserto... Dos seus
alliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla não foram
um sonho. As cartas de Umeyya, as promessas do amir nazareno de
Djalikia[1], tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem
conhece a letra de Umeyya, esse é um segredo que depois de tantas
revelações, tu deixarás, kalifa, que eu guarde para mim ... Oh, os
insensatos! os insensatos!"
E desatou a rir.
A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava
trazer á Hespanha mussulmana todos os horrores da guerra civil, devia
rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário afoga-la em
sangue. O longo habito de reinar, juncto ao caracter energico de
Abdu-r-rahman, fazia com que nestas crises elle desenvolvesse de um
modo admiravel todos os recursos que o genio amestrado pela
experiencia lhe suggeria. Recalcando no fundo do coração a cruel
lembrança de que era um filho que ia sacrificar á paz e á segurança do
império, o kalifa despediu Al-muulin, e mandando immediatamente
reunir o divan deu largas instrucções ao chefe da guarda dos slavos. Ao
romper da manhan todos os conspiradores que residiam em Cordova
estavam presos, e muitos mensageiros tinham partido levando as ordens
de Ahdu-r-rahman aos walis das provincias e aos generaes das
fronteiras. Apesar das lagrymas e rogos do generoso Al-hakem, que
luctou tenazmente por salvar a vida de seu irmão, o kalifa mostrou-se
inflexivel. A cabeça de Abdallah cahiu aos pés do algoz na propria
camara do principe no palacio Merwan. Al-barr, suicidando-se na
masmorra em que o tinham lançado, evitou assim o supplicio.
O dia immediato á noite em que se passou a scena entre Abdu-r-rahman
e Al-gafir, que tentamos descrever, foi um dia de sangue para Cordova,
e de lucto para muitas das mais illustres famílias.
[1] Os árabes designavam os reis de Oviedo e Leão pelo titulo de reis
de Galliza.
IV
Era pelo fim da tarde. N'uma alcova do palacio de Azzahrat via-se
reclinado um velho sobre as almofadas persas de um vasto almatrah, ou
camilha. Os seus ricos trajos, orlados de pelles alvissimas, faziam
sobre-saír as feições enrugadas, a pallidez do rosto, o encovado dos
olhos, que lhe davam ao gesto todas as características do de um cadaver.
Pela immobilidade dir-se-hia que era uma
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