mais do que outro não hesitaria na escolha: fôra esse que eu mandára,
não á morte, mas ao triumpho. Se, porém, essas são as tuas previsões, e
ellas tem de realisar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte
posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha em
al-djihed[3] contra os infiéis?"
Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor signal d'impaciencia.
Quando elle acabou de falar repetiu tranquillamente a pergunta:
"Kalifa, qual amas tu mais dos teus dous filhos?"
"Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me
representa no espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da
alma vejo o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e intelligente do meu
Abdallah, amo-o mais a elle. Como te posso eu, pois, responder,
fakih?"
"E todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento,
entre um e outro. Um delles deve morrer na próxima noite,
obscuramente, nestes paços, aqui mesmo talvez, sem gloria, debaixo do
cutello do algoz, ou do punhal do assassino."
Abdu-r-rahman recuára ao ouvir estas palavras: o suor começou a
descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma firmeza
fingida, sentíra apertar-se-lhe o coração desde que o fakih começára a
falar. A reputação d'illuminado de que gosava Al-muulin, o caracter
supersticioso do kalifa, e mais que tudo o haverem-se verificado todas
as negras prophecias que n'um longo decurso de annos elle lhe fizera,
tudo contribuia para atterrar o principe dos crentes. Com voz trémula
replicou:
"Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condemnar no fim da
vida a perpetua afflicção, a ver correr o sangue de meus filhos queridos
ás mãos da deshonra ou da perfidia?"
"Deus é grande e justo,--interrompeu o fakih.--Acaso nunca fizeste
correr injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despedaçaste de
dôr nenhum coração de pae, de irmão, de amigo?"
Al-muulin tinha carregado na palavra irmão com um accento singular.
Abdu-r-rahman, possuido de mal refreiado susto, não attentou por isso.
"Posso eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrivel
prophecía--exclamou elle por fim--sem que me expliques o modo por
que se deve realisar esse terrivel successo; e como ha-de o ferro do
assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azzahrat verter o sangue
de um dos filhos do kalifa de Korthoba, cujo nome, seja-me licito
dize-lo, é o terror dos christãos, e a gloria do islamismo?"
Al-muulin tomou um ar imperioso e solemne, estendeu a mão para o
throno, e disse:
"Assenta-te, kalifa, no teu throno, e escuta-me, porque em nome da
futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do imperio, e das
vidas e do repouso dos mussulmanos eu venho denunciar-te um grande
crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te um filho.
Successor do propheta, iman[4] da divina religião do Koran, escuta-me,
porque é obrigação tua ouvir-me."
O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o
negro mysterio que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado
a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Machinalmenlte
subiu ao throno, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que elle
rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse com voz
presa:--"Pódes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!"
Tomando então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre o
peito, Al-gafir o triste começou da seguinte maneira a sua narrativa.
[1] Principe dos crentes, titulo correspondente ao de kalifa.
[2] Historico
[3] Guerra-sancta
[4] Pontifice. Os kalifas reuniam em si o summo imperio, e o summo
pontificado.
III
"Kalifa!--começou Al-muulin--tu és grande; tu és poderoso. Não sabes
o que é a affronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração nobre e
energico, se este não póde repelli-la, e sem demora, com o mal ou com
a affronta, vinga-la á luz do sol! Tu não sabes o que então se passa na
alma desse homem, que por todo o desaggravo deixa fugir alguma
lagryma furtiva, e até, ás vezes, é obrigado a beijar a mão que o feriu
nos seus mais sanctos affectos. Não sabes o que isto é; porque todos os
teus inimigos tem cahido diante do alfange do almogaure, ou deixado
tombar a cabeça de cima do cêpo do algoz. Ignoras por isso o que é o
odio; o que são essas solidões tenebrosas, por onde o resentimento, que
não póde vir ao gesto, se dilata e vive á espera do dia da vingança.
Dir-to-hei eu. Nessa noite immensa, em que se involve o coração
chagado, ha uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que allumia o
espirito vagabundo. Ha ahi terriveis sonhos, em que o mais rude e
ignorante descobre sempre um meio de desaggravo. Imagina como será
facil aos altos entendimentos o encontra-lo! É por isso que a vingança,
que parecia morta e esquecida, apparece ás vezes inesperada, tremenda,
irresistivel, e
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