Lendas e Narrativas | Page 4

Alexandre Herculano

No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza.
Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se divertia o príncipe da
arriscada empresa de disputar a coroa a seu irmão Al-hakem. Um grito,
porém, de atalaia o interrompeu. Ligeiro como relampago um vulto
saíra do cemitério, galgára o cabeço, e se aproximára sem ser sentido:
vinha involto n'um albornoz escuro, cujo capuz quasi lhe encobria as
feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e revolta. Os quatro
sarracenos puseram-se em pé de um pulo, e arrancaram as espadas.
Ao ver aquelle movimento, o que chegára não fez mais do que estender
para elles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz:
então as espadas abaixaram-se como se uma corrente electrica tivesse
adormecido os braços dos quairo sarracenos. Al-barr
exclamára:--"Muulin[7] o propheta! Muulin o sancto!..."
"Muulin o peccador:--interrompeu o novo personagem--Muulin, o
pobre fakih[8] penitente e quasi cego de chorar as proprias culpas e as
culpas dos homens, mas a quem Deus por isso illumina ás vezes os
olhos da alma para antever o futuro ou ler no fundo dos corações. Li no
vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O
senhor pesou na balança dos destinos a ti, Abdallah, e a teu irmão
Al-hakem. Elle foi achado mais leve. A ti o throno; a elle o sepulchro.
Está escripto. Vae; não pares na carreira, que não te é dado parar! Volta
a Kortheba. Entra no teu palacio Merwan; é o palacio dos kalifas da tua
dynastia. Não foi sem mysterio que teu pae t'o deu por morada. Sobe ao
sotam[9] da torre. Ahi acharás cartas do kaid de Chantarya, e dellas
verás que nem elle, nem o wali de Zarkosta, nem os Beni-Hafsun
faltam ao que te juraram!"
"Sancto fakih--replicou Abdallab, crédulo como todos os musulmanos
daquelles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado--creio o que
dizes, porque nada para ti é occulto. O passado, o presente, o futuro
domina-los com a tua intelligencia sublime. Asseguras-me o triumpho;
mas o perdão do crime podes tu assegura-lo?"
"Verme, que te crês livre!--atalhou com voz solemne o fakih.--Verme,

cujos passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frageis
instrumentos nas mãos do destino, e que te crês auctor de um crime!
Quando a frecha despedida do arco fere mortalmente o guerreiro, pede
ella acaso a Deus perdão do seu peccado? Atomo varrido pela colera de
cima contra outro atomo, que vaes aniquilar, pergunta antes se nos
thesouros do Misericordioso ha perdão para o orgulho insensato!"
Fez então uma pausa. A noite descia rapida. Ao lusco-fusco ainda se
viu sair da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que
apontava para as bandas de Cordova. Nesta postura a figura do fakih
fascinava. Coando pelos lábios as syllabas, elle repeliu tres vezes:
"Para Merwan!"
Abdallah abaixou a cabeça, e partiu vagarosamente, sem olhar para traz.
Os outros sarracenos seguiram-no. El-Muulin ficou só.
Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Cordova; se
vivesseis, porém, naquella epocha e o perguntasseis nessa cidade de
mais de um milhão de habitantes, ninguem vo-lo saberia dizer. Era um
mysterio a sua patria, a sua raça, donde viera. Passava a vida pelos
cemiterios ou nas mesquitas. Para elle o ardor da canicula, a neve ou as
chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras vezes se via que
não fosse lavado em lagrymas. Fugia das mulheres como de um objecto
de horror. O que, porém, o tornava geralmente respeitado, ou antes
temido, era o dom de prophecia, o qual ninguem lhe disputava. Mas era
um propheta terrivel, porque as suas predicções recahiam unicamente
sobre futuros males. No mesmo dia em que nas fronteiras do imperio os
christãos faziam alguma correria, ou destruiam alguma povoação, elle
annunciava publicamente o successo nas praças de Cordova: qualquer
membro da familia numerosa dos Beni-Umeyyas cahia debaixo do
punhal de um assassino desconhecido, na mais remota provincia do
imperio, ainda das do Moghreb ou Mauritania, na mesma hora, no
mesmo instante ás vezes, elle o pranteava redobrando os seus choros
habituaes. O terror que inspirava era tal, que no meio do maior tumulto
popular a sua presença bastava para tudo caír em mortal silencio. A
imaginação exaltada do povo tinha feito delle um sancto, sancto como
o islamismo os concebia; isto é, um homem cujas palavras e aspecto
gelavam de terror.
Ao passar por elle, Al-barr apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz
quasi imperceptivel:

"Salvaste-me!"
O fakih deixou-o affastar, e fazendo um gesto de profundo despreso,
murmurou:
"Eu?! Eu teu cumplice, miseravel?!"
Depois, alevantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar
os dedos rapidamente, e rindo com um rir sem vontade, exclamou:
"Pobres titeres!"
Quando se fartou de representar com os dedos a idéa de escarneo que
lhe sorria lá dentro,
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