Lendas e Narrativas | Page 7

Alexandre Herculano
grande ladro.
D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla da clareira juncto de um frondoso carvalho.
"Tarik!--gritou o mancebo--Tarik!"--Mas Tarik ��a avante e n?o escutava.
"Ai, deixa-o correr, meu filho! N?o �� para o teu mastim levar a melhor desse onagro."
Isto dizia uma voz que, l�� em cima no alto da penha, come?ou de soar.
Olhou: linda mulher estava ahi assentada, e com um gesto amoroso e um sorriso d'anjo para elle se inclinava.
"Minha m?e! minha m?e!--bradou Inigo Guerra alevantando-se: e l�� comsigo dizia:
--Vade retro! Sancto Hermenegildo me valha!"
E como molh��ra a cabe?a, sentiu que os cabellos se lhe iam al?ando de arripiados.
"Filho, na b?ca palavras d?ces; no cora??o palavras damnadas. Mas que importa, se ��s meu filho? Dize o que queres de mim, que ser�� tudo feito a teu talante e vontade."
O mo?o cavalleiro nem acertava a falar com medo. J�� a este tempo Tarik gemia uivando debaixo dos p��s do onagro.
"Captivo est�� de mouros ha annos meu pae D. Diogo Lopes:--disse por fim titubeando.--Quizera me ensinasseis, senhora, o modo como hei-de salva-lo."
"Seu mal, t?o bem como tu, eu sei. Se podesse ter-lhe-hia accorrido, sem que viesses requere-lo; mas o velho tyranno do ceu quer que elle pene tantos annos quantos viveu com a ... com a que sandeus chamam Dama P��-de-Cabra."
"N?o blasphemeis contra Deus, minha m?e, que �� enorme culpa:--interrompeu o mancebo cada vez mais horrorisado.
"Culpa?! N?o ha para mim innocencia nem culpa:--replicou a dama rindo ��s gargalhadas.
Era um rir de dorminte, triste e medonho. Se o diabo ri, como aquelle deve de ser o rir do diabo.
O cavalleiro n?o p?de dizer mais palavra.
"Inigo!--proseguiu ella--falta um anno para cumprir-se o captiveiro do nobre senhor de Biscaia. Um anno passa depressa: mais depressa eu t'o farei passar. V��s tu aquelle valente onagro? Quando uma noite acordando o achares ao p�� de ti, manso como um cordeiro, cavalga nelle sem susto, que te levar�� a Toledo, onde livrar��s teu pae.--E bradando accrescentou:--Est��s por isto, Pardalo?"
O onagro fitou as orelhas, e em signal de approva??o come?ou a azurrar; come?ou por onde ��s vezes academias acabam.[2]
Depois a dama poz-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se de um psalterio, de que tirava mui estranhas toadas:
Pelo cabo da vassoura, Pela corda da pol��, Pela vibora que v��, Pela Sura e pela Toura.
Pela vara do cond?o, Pelo panno da peneira, Pela velha feiticeira, Do finado pela m?o,
Pelo bode rei da festa, Pelo capo inteiri?ado, Pelo infante dessangrado Que a bruxa chupou �� s��sta;
Pelo craneo alvo e lustroso Em que sangue se libou, E do irm?o, que irm?o matou, Pelo arranco doloroso;
Pelo nome de mysterio Que em palavras se n?o diz Vinde j�� precitos vis; Vinde ouvir o meu psalterio!
E dan?ae-me aqui na terra Uma dan?a doudejante, Que entonte?a n'um instante O meu filho Inigo Guerra.
Que elle durma um anno inteiro, Como em somno de uma hora, Juncto �� fonte que alli chora, Sobre a relva deste outeiro.
Emquanto a dama cantava estas cantigas, o mancebo sentia um quebramento nos membros que crescia cada vez mais, e que o obrigou a assentar-se.
E logo, logo, ouviu-se um ruido abafado como de trov?es e de ventanias engolfando-se em covoadas: depois o c��u come?ou de toldar-se, e cada vez era mais cris, at�� que, emfim, apenas uma luz de crepusculo o allumiava.
E a mansa almacega refervia, e os penedos rachavam, e as arvores torciam-se, e os ares sibilavam.
E das bolhas da agua da fonte, e das fendas dos rochedos, e d'entre as ramas dos robles, e da vastid?o do ar via-se descer, subir, romper, saltar ... o qu��?--Cousa muito espantavel.
Eram mil e mil bra?os sem corpos, negros como carv?o, tendo nos cotos uma aza, e na m?o cada um uma especie de facho.
Como a palha que o tuf?o levanta na eira, aquella multid?o de candeias cruzava-se, revolvia-se, unia-se, separava-se, remoinhava, mas sempre com certa cadencia, como que dan?ando a compasso.
A D. Inigo andava a cabe?a �� roda: as luzes pareciam-lhe azues, verdes, e vermelhas, mas corria-lhe pelos membros uma languidez t?o suave, que n?o teve animo para fazer o signal da cruz, e afugentar aquelle bando de Satanazes.
E sentia-se esvaecer, e pouco a pouco adormecia, e d'alli a pouco roncava.
Entretanto no castello tinham dado pela sua falta. Esperaram-no at�� a noite; esperaram-no uma semana, um mez, um anno, e n?o o viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a serra; mas o sitio em que o cavalleiro jazia, isso �� que n?o havia l�� chegar.
3
Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas; ao menos elle assim o cria. Olhou para o c��u, viu estrellas: apalpou ao redor, achou terra: escutou, ouviu ramalhar as arvores.
Pouco a pouco �� que se foi recordando do que pass��ra com sua malaventurada m?e; porque a principio n?o se lembrava de nada.
Pareceu-lhe ent?o ouvir respirar ali perto: affirmou a vista: era o onagro
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