do principe dos crentes recobrára apparente serenidade. Descendo do throno pegou na m?o mirrada de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:
"Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem acceito ao propheta, perdoa as injurias de um insensato! Cria ser superior á fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas tu esquece-lo! Agora estou tranquillo ... bem tranquillo ... Abdallah, o traidor que era meu filho, n?o concebeu t?o atroz designio. Alguém lh'o inspirou: alguem verteu naquelle animo soberbo as vans e criminosas esperan?as de subir ao throno por cima do meu cadaver e do de Al-hakem. N?o desejo sabe-lo para o absolver; porque elle já n?o póde evitar o destino fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pae fui kalifa, e Deus confiou-me no Andalus a espada da suprema justi?a. Morrerá; mas h?o-de acompanha-lo todos os que o precipitaram no abysmo."
"Ainda ha pouco te disse--replicou Al-gafir--o que p?de inventar o ódio que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indifferen?a, e até da submiss?o. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu offendeste no seu amor proprio de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um homem sem engenho nem saber, quiz provar-te que ao menos possuia o talento de conspirador. Foi elle que preparou este terrivel successo. Has-de confessar que se houve com destreza. Só n'uma cousa n?o: em pretender associar-me aos seus designios. Associar-me? ... n?o digo bem ... fazer-me seu instrumento ... A mim! ... Queria que eu te apontasse ao povo como um impio pelas tuas allian?as com os amires infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei a meu cargo as mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o alliado dos christ?os, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude colligir estas provas de conspira??o. Loucos! as suas esperan?as eram a miragem do deserto... Dos seus alliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla n?o foram um sonho. As cartas de Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia[1], tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra de Umeyya, esse é um segredo que depois de tantas revela??es, tu deixarás, kalifa, que eu guarde para mim ... Oh, os insensatos! os insensatos!"
E desatou a rir.
A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolu??o, que amea?ava trazer á Hespanha mussulmana todos os horrores da guerra civil, devia rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário afoga-la em sangue. O longo habito de reinar, juncto ao caracter energico de Abdu-r-rahman, fazia com que nestas crises elle desenvolvesse de um modo admiravel todos os recursos que o genio amestrado pela experiencia lhe suggeria. Recalcando no fundo do cora??o a cruel lembran?a de que era um filho que ia sacrificar á paz e á seguran?a do império, o kalifa despediu Al-muulin, e mandando immediatamente reunir o divan deu largas instruc??es ao chefe da guarda dos slavos. Ao romper da manhan todos os conspiradores que residiam em Cordova estavam presos, e muitos mensageiros tinham partido levando as ordens de Ahdu-r-rahman aos walis das provincias e aos generaes das fronteiras. Apesar das lagrymas e rogos do generoso Al-hakem, que luctou tenazmente por salvar a vida de seu irm?o, o kalifa mostrou-se inflexivel. A cabe?a de Abdallah cahiu aos pés do algoz na propria camara do principe no palacio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra em que o tinham lan?ado, evitou assim o supplicio.
O dia immediato á noite em que se passou a scena entre Abdu-r-rahman e Al-gafir, que tentamos descrever, foi um dia de sangue para Cordova, e de lucto para muitas das mais illustres famílias.
[1] Os árabes designavam os reis de Oviedo e Le?o pelo titulo de reis de Galliza.
IV
Era pelo fim da tarde. N'uma alcova do palacio de Azzahrat via-se reclinado um velho sobre as almofadas persas de um vasto almatrah, ou camilha. Os seus ricos trajos, orlados de pelles alvissimas, faziam sobre-saír as fei??es enrugadas, a pallidez do rosto, o encovado dos olhos, que lhe davam ao gesto todas as características do de um cadaver. Pela immobilidade dir-se-hia que era uma destas mumias que se encontram pelas catacumbas do Egypto, apertadas entre as cem voltas das suas faixas mortuarias, e inteiri?adas dentro dos sarcophagos de pedra. Um unico signal revelava a vida néssa grande ruina de um homem grande; era o movimento da barba longa e ponteaguda que se lhe estendia como um cone de neve tombado sobre o peitilho da tunica de precioso tiraz. Abdu-r-rahman, o illustre kalifa dos mussulmanos do occidente, jazia ahi e falava com outro velho, que, em pé defronte delle, o escutava attentamente; mas a sua voz saia t?o fraca e lenta, que, apesar do silencio que reinava no aposento, só na curta distancia a que estava o outro velho se
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