Lendas do Sul | Page 4

J. Simões Lopes Netto
passavam comendo canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os ti??es...
Os olhos andavam t?o enfarados da noite, que, ficavam parados, horas e horas, olhando sem ver as brasas vermelhas do nhanduvái... as brasas somente, porque as faiscas, que alegram, n?o saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes.
Naquela escurid?o fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia andando... ia andando...

II
Minto:
no meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o téu-téu ativo, que n?o dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já...
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu — quero quero! — t?o claro, vindo de lá do fundo da escurid?o, ia agüentando a esperan?a dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento, ent?o, nem nada.

III
Minto:
na ultima tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o lado para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela d’alva, nessa ultima tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d’água que levou um temp?o a cair, e durou... e durou...
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas
coleando os tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele peso d’água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E era terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E ent?o!...
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas, as cobras se enroscavam na enredi?a dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas boiavam os rat?es e outros miúdos.
E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra grande, a — boi-guassú — que, havia já muitas m?os de luas, dormia quieta, entanguida. Ela ent?o acordou-se e saiu, rabiando.
Come?ou depois a mortandade dos bichos e a boi-guassú pegou a comer as carni?as. Mas só comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carni?a foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra grande comia.

IV
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue tem cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dam nos olhos a cor dos seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e m?o aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e toma tenência doble com os raiados e ba?os!...
Assim foi também, mais de outro jeito, com a boi-guassú, que tantos olhos comeu.

V
Todos — tantos, tantos! que a cobra grande comeu —, guardavam entranhando e luzindo, um rastilho da ultima luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos — tantos, tantos! — com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no principio um punhado, ao depois uma por??o, depois um bocad?o, depois, como uma bra?ada...

VI
E vai,
como a boi-guassú n?o tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta vai, o seu corpo foi ficando transparente clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boi-guassú toda já era uma luzerna, um clar?o sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos...

VII
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela primeira vez viram a boi-guassú t?o demudada, n?o a conheceram mais. N?o conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamaram-na desde ent?o, de boi-tátá, cobra de fogo, boi-tátá , a boi-tátá !
E muitas vezes a boi-tátá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarr?o. Era ent?o que o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente — tátá, de fogo — que media mais bra?as que três la?os de conta e
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