Lagrimas Abençoadas | Page 5

Camilo Castelo Branco
sua honra talvez, e pae
de familia tambem, ouvia o zumbir da metralha, como halito da morte a
afflar-lhe os cabellos. Mas a mãe de Maria pedia por ambos; e, quando
a oração assim é feita, o espirito de Deus está nos labios do que ora.
Enxuga as tuas lagrimas, sorve as de teus filhos com teus beijos, mãe e
esposa, que o pae d'essas creanças, o homem, que traz no coração os
alentos de que te sustentas no mundo, não ha de a bala ou a espada
cortar-lhe os vinculos a que prendeste a tua melindrosa existencia.
Não ha de, que teu marido entrou na guerra de irmãos com o coração
enlutado, como em arena fratricida, e, ao ouvir o som rispido da
trombeta que mandava morrer matando, muitas vezes eleva ao Senhor o
espirito atribulado, supplicando-lhe a reconciliação dos portuguezes.
Não ha de, que, nas vesperas angustiosas de uma peleja, teu piedoso
marido, refugiando-se dos cabos de guerra que tripudiam e
blasphemam farejando o sangue da carnagem do dia seguinte, ergue as
mãos ao Senhor, supplicando-lhe que acceite no regaço da sua
misericordia, uma viuva desvalida, filhinhos desamparados, aos quaes a
mão do vencedor não extenderá mão esmoler, seja qual fôr o
triumphante.
Não ha de, atribulada mãe e esposa, porque as paixões clamorosas dos
impios não ensurdecem o céo aos rogos de um justo, que lava com
lagrimas cada gota de sangue de irmãos que lhe salpica a farda.
Expande o teu coração opprimido no seio de Deus, dolorida mãe.
Deixa rugir lá fóra o phrenesi dos odios civis, e acolhe-te, mulher
cortada de agonias, acolhe-te ao refugio da religião, respira ahi em

lagrimas a oppressão que os meigos carinhos de teus filhos não podem
consolar-te.
Ao mesmo tempo que oras no meio d'elles, o coração de teu esposo
comtigo se ala para a região serena da paz e bemaventurança eterna.
Sois duas almas puras que se encontraram na terra, juntas ascendem a
Deus na oração, juntas hão de compartir as amarguras da pobreza,
juntas hão de receber a corôa triumphal no dia marcado á recompensa
dos que choram na terra.
Assim lhe segredava o anjo da resignação alentos que a faziam confiar
no regresso de seu marido. Rodeada de seus filhos, a esposa do coronel,
fantasiava com Maria as venturas, que, ainda na pobreza, podem
deliciar corações enriquecidos pelos dons da amizade. Maria, tão joven
e innocentinha, compreendia as alegrias de sua mãe, e respondia a ellas
festejando a volta de seu pae, como se elle viesse já caminhando a
indemnisar-se dos trabalhos no goso da paz, no amor santo da familia,
nas donosas alegrias de uma obscuridade feliz.
Mas estas esperanças eram a cada hora desvanecidas pelas más novas
que vinham do campo da batalha. O sobresalto da pobre mãe era
constantemente despertado aos trons da artilharia que jogava nas linhas
de Lisboa.
VI
O coronel... (já não era coronel) o homem da honra e da coragem
amanheceu um dia á porta de sua mulher. Trazia nas faces aquella
magreza livida que o sopro das batalhas, e o enervamento da fome
estampam no rosto do vencedor, e do vencido. Vencido era elle. Não
trazia espada, que a pureza, não aos pés do vencedor, mas sobre a acta
de uma capitulação, deixára ao bravo a consciencia da sua intrepidez.
Nem uma lagrima lhe escapou involuntaria dos olhos, quando,
exauctorado e desvalido, se collocou entre os derradeiros thesouros que
lhe restavam: sua esposa, e seus cinco filhos. Esses, sim, eram d'elle,
eram de seu coração como a virtude, emanação de Deus, é quasi
sempre o unico patrimonio do virtuoso.

E é por isso que não houveram lagrimas, que assombrassem n'aquelles
labios o jubilo do sorriso. É por isso que paes e filhos caíram de joelhos;
e, no silencio de seus corações, Deus sabe a acção de graças, que lhe
subira aos pés de seu throno n'aquellas extaticas elevações de alegria
reconhecida.
Ao levantarem-se, abraçaram-se, uma e muitas vezes; e quando as
palavras venceram a suffocação da surpresa, uma só voz, a de todos,
exclamou:
«Somos muito felizes! Bemdito seja Deus!»
VII
Caír de elevada jerarchia, quando os braços da religião não amparam o
infeliz na queda, deve ser morrer!
Altearmo'-nos a despeito de muitos, que não podem voejar tanto acima,
é provocar-lhes a inveja. Olha'-los em baixo, quando nos cospem o fel
da inveja, deve ser-lhes o maior dos castigos; mas, se d'ahi a mão de
Deus nos atira ao raso dos invejosos, se a desgraça nos marca, no meio
d'elles, um circulo onde rodar com o peso de affrontas, que a nossa
arrogancia enfardára... tal vida é a preexistencia do inferno.
Ha tres remedios para alliviar angustias de tal lance:
A resignação;
O cynismo;
O suicidio.
A resignação não é só o amparo d'aquelle que resvala no precipicio
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