Lagrimas Abençoadas | Page 6

Camilo Castelo Branco
Será obrigatorio o punhal ou o veneno, porque estava escripto o meu suicidio!?...
A providencia é a ac??o da Divindade.
O grande da terra julgára-se grande na terra pela providencia. Era um magestoso edificio aos olhos da humanidade, e fragil barro entre as m?os de Deus. Quando o sopro da desventura lhe assolou as columnas, o grande, só, e proscripto das ova??es, em que elle f?ra o menos laureado, era ainda o grande na desgra?a, na esperan?a, na humildade, na renuncia, e na confian?a.
Esperava... o tumulo, e antes d'elle um saldo de contas com o mundo, onde o rico deixa debitos enormes a solver.
Humilhava-se diante Deus, que o abatera, n?o como um cego destino, mas como um decreto, sanccionado no céo, cumprido na terra, e explicado no dia das tremendas explica??es dos mysterios, incompreensiveis aqui. Humilhava-se diante dos homens que nunca humilhára; diante d'aquelles, que puderam abandona'-lo, mas n?o escarnece'-lo pelo seu passado orgulho.
Renunciára quantas prerogativas o seu ouro lhe dera na sociedade; quantas pompas lhe caíam ao encontro na sua estrada de fl?res; quantas esperan?as idealisára, que mais o engrandecessem, na perspectiva do mundo, sem adulterar as mercês do Creador.
Confiava na humildade da ora??o, no p?o de cada dia, no repouso providencial de cada noite, porque no mundo nenhuma existencia vira abandonada, nem a da ave que se levanta com a aurora, e louva ao Creador, e vae procurar o alimento, que n?o deixou de vespera.
VIII
N?o é assim o cynico.
Herdára um thesouro que seus paes lhe prepararam; e preparára elle em seu cora??o todos os elementos para augmenta'-lo.
Que o ouro augmenta, quando é lan?ado no cadinho da perversidade. E o cora??o, ferido de avareza, é um segundo thesouro para quem herdou o primeiro. O mais efficaz instrumento da caridade, o ouro, nas m?os do avaro, converte-se em ferro de dois gumes: um que lhe entra no proprio cora??o, outro no cora??o que lhe pede o obulo.
é assim o cynico.
Em cada degrau da sua escala de grandeza espirrava o sangue das faces que calcava. Entre elle, e um circulo de victimas, que o rodearam, fascinadas pelo brilho da sua auréola, erguia-se o anteparo da irreligi?o.
Quem lhe déra o sorriso feroz f?ra a impiedade.
Quem lhe alimentara as ancias de cevar-se em gosos, adubados em lagrimas e sangue, f?ra a impiedade.
Quem lhe segredára os derradeiros segredos do crime, para que o enojo de crimes repetidos lhe n?o esfriasse o amor sordido da vida, f?ra a impiedade.
Quem lhe disséra que no tumulo para dentro n?o ha pobres para repellir, nem cor?as de virgem para desfolhar, nem faces lagrimosas para cuspir, nem amigos para vender a inimigos, f?ra a impiedade.
IX
E, depois, a m?o de Deus despenhou o cynico.
No tremedal, onde caíra, roeram-n'o os vermes dos cadaveres que elle fizera.
E riu-se.
Cobriram-n'o os improperios, e os sarcasmos de tantos, que elle enxovalhára, sacudindo-lhes ás faces a lama das ruas com as rodas do seu carro insultuoso.
E riu-se.
Teve que aceitar uma esmola, que, por escarneo lhe lan?ou ao chapéo um d'aquelles que lh'a pedira, em v?o, anceado de fome.
E riu-se.
Bateu á porta de seus creados, que medravam nas prodigalidades do amo: pediu um bocado de p?o, e responderam-lhe de dentro com uma gargalhada.
E riu-se.
Este é o cynico.
E quando lhe aconselharam o suicidio, riu-se, e riu até morrer porque a morte de cynico é uma risada na blasphemia.
X
Lamentae o suicida, porque a sua ultima hora foi uma lucta horrivel entre a desespera??o, a incerteza, e, talvez a saudade.
Ao ver-se pobre no mundo, considerou-se o homem sem vida social; mas a vida physica, onde as frechas do desprezo lhe rasgavam até o cora??o, era-lhe uma algema insoffrivel a maneata'-lo ao poste da vergonha.
Feliz pelo destino, ou desgra?ado pela fatalidade, o Lucifer, despenhado d'este céo da terra, que a impiedade lhe deu, optou pelo tumulo entre duas idéas: pobreza e impotencia.
Impotente para vencer a sociedade que lhe n?o restituia o seu ouro, o desesperado, aborrecendo a morte tanto como a vida, crava-se um punhal, que nem elle sabe se o vinga dos homens, se o deita no tumulo, se o sacrifica á justi?a de Deus.
O atheu pensára longas horas antes de erguer-se o patibulo; mas, nos seus ultimos instantes, n?o era philosopho: era um algoz.
A desespera??o enervára-lhe o entendimento, e robustecera-lhe o bra?o.
O cutello, no bra?o do algoz, n?o tem nada com o espirito. Um e outro s?o machinas de morte.
XI
E o coronel ***, e sua esposa, e seus filhinhos eram christ?os. E oravam na desgra?a, e sorriam no infortunio, e esperavam.
Esperan?a, filha dos céos! eterno cantico dos anjos!... bemdita sejas tu.
XII
E, quantas vezes, acarinhados pelas brandas lisonjas de uma esperan?a, nos possuimos d'aquelle inoffensivo orgulho de felicidade, e t?o perto nos persuadimos que ella vem com toda a formosura real de um bello sonho? E quando assim nos apressamos ao encontro d'essa linda chimera, gerada nas entranhas do infortunio, n?o será
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