Frei Luiz de Sousa | Page 5

Almeida Garrett
ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D.
Sebastião... ninguem tal hade dizer, mas põe-se logo outro, muda de
semblante, fica pensativo e carrancudo: parece que o vinha affrontar, se
voltásse, o pobre do rei.--Ó minha mãe, pois elle não é por D. Filippe;
não é, não?
*Magdalena*. Minha querida Maria, que tu hasde estar sempre a
imaginar n'essas coisas que são tam pouco para a tua edade! Isso é o
que nos afflige, a teu pae e a mim; queria-te ver mais alegre, folgar
mais, e com coisas menos...
*Maria*. Então, minha mãe, então!--Veem, veem?... tambem minha
mãe não gosta. Oh! essa ainda é peor, que se afflige, chora... ella ahi
está a chorar... ella ahi está a chorar... (_vai-se abraçar com a mãe que
chora_) Minha querida mãe, ora pois então!--Vai-te embora, Telmo,
vai-te: não quero mais fallar, nem ouvir fallar de tal batalha, nem de
taes histórias, nem de coisa nenhuma d'essas.--Minha querida mãe!
*Telmo*. E é assim: não se falla mais n'isso. E eu vou-me embora. (_Á
parte, indo-se depois de lhe tomar as mãos_) Que febre que ella tem
hoje, meu Deus! queimam-lhe as mãos... e aquellas rosetas nas faces...
Se o perceberá a pobre da mãe!
SCENA IV
MAGDALENA, MARIA
*Maria*. Quereis vós saber, mãe, uma tristeza muito grande que eu

tenho?--A mãe ja não chora, não? ja se não infada commigo?
*Magdalena*. Não me infado comtigo nunca, filha; e nunca me affliges,
querida. O que tenho é o cuidado que me dás, é o receio de que...
*Maria*. Pois ahi está a minha tristeza: é esse cuidado em que vos vejo
andar sempre por minha causa. Eu não tenho nada; e tenho saude, olhae
que tenho muita saude.
*Magdalena*. Tens, filha... se Deus quizer, hasde ter; e hasde viver
muitos annos para consolação e amparo de teus paes que tanto te
querem.
*Maria*. Pois olhae: passo noites inteiras em claro a lidar n'isto, e a
lembrar-me de quantas palavras vos tenho ouvido, e a meu pae... e a
recordar-me da mais pequena acção e gesto,--e a pensar em tudo, a ver
se descubro o que isto é--o porque tendo-me tanto amor... que, oh isso
nunca houve decerto filha querida como eu!...
*Magdalena*. Não, Maria.
*Maria*. Pois sim; tendo-me tanto amor, que nunca houve outro egual,
estaes sempre n'um sobresalto commigo?...
*Magdalena*. Pois se te estremecêmos?
*Maria*. Não é isso, não é isso: é que vos tenho lido nos olhos... Oh,
que eu leio nos olhos, leio, leio!... e nas estrêllas do ceu tambem--e sei
coisas...
*Magdalena*. Que estás a dizer, filha, que estás a dizer? que desvarios!
Uma menina do teu juizo, temente a Deus... não te quero ouvir fallar
assim.--Ora vamos: anda ca, Maria, conta-me do teu jardim, das tuas
flores. Que flores tens tu agora? O que são éstas? (_pegando nas que
ella traz na mão_)
*Maria*, abrindo a mão e deixando-as cahir no regaço da mãe.
Murchou tudo... tudo estragado da calma... Éstas são papoulas que

fazem dormir, colhi-as para as metter debaixo do meu cabeçal ésta
noite; quero-a dormir de um somno, não quero sonhar, que me faz ver
coisas... lindas ás vezes, mas tam extraordinarias e confusas...
*Magdalena*. Sonhar, sonhas tu acordada, filha! Que, olha, Maria,
imaginar é sonhar: e Deus pôs-nos n'este mundo para velar e
trabalhar--com o pensamento sempre n'elle sim, mas sem nos
extranharmos a éstas coisas da vida que nos cercam, a éstas
necessidades que nos impõe o estado, a condicção em que nascêmos.
Ves tu, Maria: tu es a nossa unica filha, todas as esperanças de teu pae
são em ti...
*Maria*. E não lh'as posso realizar, bem sei.--Mas que heide eu fazer?
eu estudo, leio...
*Magdalena*. Les demais, cânças-te, não te distraes como as outras
donzellas da tua edade, não es...
*Maria*. O que eu sou... só eu o sei, minha mãe... E não sei, não: não
sei nada, senão que o que devia ser não sou...--Oh! porque não havia de
eu ter um irmão que fosse um galhardo e valente mancebo, capaz de
commandar os terços de meu pae, de pegar n'uma lança d'aquellas com
que os nossos avós corriam a India, levando adeante de si Turcos e
Gentios! um bello moço que fosse o retratto proprio d'aquelle gentil
cavalleiro de Malta que alli está. (Apontando para o retratto) Como
elle era bonito meu pae! Como lhe ficava bem o preto!... e aquella cruz
tam alva em cima! Paraque deixou elle o hábito, minha mãe, porque
não ficou n'aquella sancta religião, a vogar em suas nobres galeras, por
esses máres, e a affugentar os infieis deante da bandeira da Cruz?
*Magdalena*. Oh filha, filha!... (Mortificada) porque não foi vontade
de Deus: tinha de ser d'outro modo.--Tomára eu agora que elle
chegásse de Lisboa! Comeffeito é muito tardar... valha-me Deus!
SCENA V
JORGE,
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