Frei Luiz de Sousa | Page 4

Almeida Garrett
pureza d'aquella
innocente, para condemnar a eterna deshonra a mãe e a filha... (_Telmo
dá signaes de grande agitação_) Ora dize: ja pensastes bem no mal que
estás fazendo?--Eu bem sei que a ninguem n'este mundo, senão a mim,
fallas em taes coisas... fallas assim como hoje temos fallado... mas as
tuas palavras mysteriosas, as tuas allusões frequentes a esse desgraçado
rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quiz
acreditar que morrêsse, por quem ainda espera em sua leal
incredulidade!--esses continuos agouros em que andas sempre de uma
desgraça que está imminente sôbre a nossa familia... não ves que estás
excitando com tudo isso a curiosidade d'aquella criança, aguçando-lhe
o espirito--ja tam perspicaz!--a imaginar, a descobrir... quem sabe se a
accreditar n'essa prodigiosa desgraça em que tu mesmo... tu mesmo...
sim, não cres devéras? Não cres, mas achas não sei que doloroso prazer
em ter sempre viva e suspensa essa dúvida fatal. E então considera, ve:
se um terror similhante chega a entrar n'aquella alma, quem lh'o hade
tirar nunca mais?... O que hade ser d'ella e de nós?--Não a perdes, não a
mattas... não me mattas a minha filha?
*Telmo*, _em grande agitação durante a falla precedente, fica
pensativo e aterrado: falla depois como para si_. É verdade que sim! A
morte era certa.--E não hade morrer: não, não, não, tres vezes não.
(_Para Magdalena_) Á fe de escudeiro honrado, senhora D. Magdalena,
a minha bôcca não se abre mais; e o meu espirito hade... hade fechar-se
tambem... (Á parte) Não é possivel, mas eu heide salvar o meu anjo do
ceu! (Alto para Magdalena) Está ditto, minha senhora.
*Magdalena*. Ora Deus t'o pague,--Hoje é o último dia de nossa vida
que se falla em tal.
*Telmo*. O último.
*Magdalena*. Ora pois, ide, ide ver o que ella faz: (levantando-se) que
não esteja a ler ainda, a estudar sempre. (Telmo vae a sahir) E olhae:
chegae-me depois alli a San'Paulo, ou mandae, se não podeis...
*Telmo*. Ao convento dos Dominicos? Pois não posso!... quatro
passadas.

*Magdalena*. E dizei a meu cunhado, a Frei Jorge-Coutinho, que me
está dando cuidado a demora de meu marido em Lisboa; que me
prometteu de vir antes de véspera, e não veiu; que é quasi noite, e que
ja não estou contente com a tardança. (Chega á varanda, e olha para o
rio) O ar está sereno, o mar tam quieto, e a tarde tam linda!... quasi que
não ha vento, é uma viração que affaga... Oh e quantas faluas
navegando tam garridas por esse Tejo! Talvez n'alguma
d'ellas--n'aquella tam bonita--venha Manuel de Sousa.--Mas n'este
tempo não ha que fiar no Tejo, d'um instante para o outro levanta-se
uma nortada... e então aqui o pontal de Cacilhas!--Que elle é tam bom
mareante... Ora, um cavalleiro de Malta! (olha para o retratto com
amor) Não é isso o que me dá maior cuidado. Mas em Lisboa ainda ha
peste, ainda não estão limpos os ares... E ess'outros ares que por ahi
correm d'estas alterações públicas, d'estas malquerenças entre
castelhanos e portuguezes! Aquelle character inflexivel de Manuel de
Sousa traz-me n'um susto contínuo.--Vai, vai a Frei Jorge, que diga se
sabe alguma coisa, que me assocegue, se podér.
SCENA III
MAGDALENA, TELMO, MARIA
*Maria*, _entrando com umas flores na mão, incôntra-se com Telmo, e
o faz tornar para a scena_. Bonito! Eu ha mais de meia hora no eirado
passeando--e sentada a olhar para o rio a ver as faluas e os bergantins
que andam para baixo e para cima--e ja abhorrecida de esperar... e o
senhor Telmo, aqui pôsto a conversar com minha mãe, sem se importar
de mim!--Que é do romance que me promettestes? não é o da batalha,
não é o que diz:
Postos estão, frente a frente, Os dois valorosos campos;
é o outro, é o da ilha incoberta onde está elrei D. Sebastião, que não
morreu e que hade vir um dia de névoa muito cerrada... Que elle não
morreu; não é assim, minha mãe?
*Magdalena*. Minha querida filha, tu dizes coisas? Pois não tens
ouvido, a teu tio Frei Jorge e a teu tio Lopo de Sousa, contar tantas

vezes como aquillo foi? O povo coitado imagina essas chymeras para
se consolar na desgraça.
*Maria*. Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: elles que
andam tam crentes n'isto, alguma coisa hade ser. Mas ora o que me dá
que pensar é ver que, tirado aqui o meu bom velho Telmo, (_chêga-se
toda para elle, acarinhando-o_) ninguem n'esta casa gosta de ouvir
fallar em que escapásse o nosso bravo rei, o nosso sancto rei D.
Sebastião.--Meu pae, que é tam bom portuguez, que não póde soffrer
estes castelhanos, e que até ás vezes dizem que é demais o que elle faz
e o que elle falla... em
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