Contos para a infância | Page 5

Guerra Junqueiro
dos
seus desejos, articular-lhe uma palavra de consolação.
Passou-se assim toda a manhã.
«Já não tenho agua, exclamou a prisioneira. Saiu toda a gente, sem me
deixarem ao menos uma gota d'agua. A garganta queima-me, tenho
uma febre terrivel, sinto-me abafada! Ai! Não ha remedio senão morrer,
longe do sol explendido, longe da fresca verdura e de todas as
magnificencias da creação!»
Depois enterrou o bico na relva humida para se refrescar um pouco.
Viu então o malmequer; fez-lhe um signal de cabeça amigavel, e
disse-lhe, afagando-o: «Tambem tu, pobre florinha, morrerás aqui! Em
vez do mundo inteiro, que eu tinha à minha disposição, deram-me um
pedacito de relva, e a ti só por unica companhia. Cada pésinho de relva
substitue para mim uma arvore, e cada uma das tuas folhas brancas,
uma flor odorifera. Ah! como me fazes recordar de todas as coisas que
perdi!

--Se eu podesse consolal-a! pensava o malmequer, incapaz de fazer o
minimo movimento.
Comtudo o perfume que elle exalava, tornou-se mais forte que de
costume; a cotovia sentiu-o, e, apesar da sede devoradora que a
obrigava a arrancar a herva, teve todo o cuidado em não tocar nem
sequer de leve na flor.
Caiu a noite; não estava ali ninguem, para trazer uma gotta d'agua á
desditosa cotovia; Estendeu então as suas bellas azas, sacudindo-as
convulsivamente, e poz-se a cantar uma cançãosinha melancolica; a sua
cabecinha inclinou-se para a flor, e o seu coração quebrado de desejos e
d'angustias cessou de bater. Vendo este triste espectaculo, o malmequer
não pôde como na vespera fechar as suas folhas para dormir; curvou-se
para o chão, doente de tristeza.
Os rapazitos só voltaram no dia seguinte, e, vendo o passarinho morto,
rebentaram-lhe as lagrimas e abriram uma cova. Metteram o cadaver
dentro d'uma caixa vermelha, lindissima, fizeram-lhe um enterro de
principe, e cobriram o tumulo com folhas de rosas.
Pobre passarinho! Emquanto vivia e cantava, esqueceram-se d'elle e
deixaram-n'o morrer de fome na gaiola; depois de morto é que o
choraram e lhe fizeram honrarias pomposissimas.
A relva e o malmequer lançaram-as para a poeira da estrada; d'aquelle
que com tanta ternura tinha amado a cotovia, ninguem se lembrou.

*Não quero*
Um dia, passando na estrada, ouvi dois rapazitos que fallavam muito
alto: «Não, dizia um com voz energica, não quero.» Parei e
perguntei-lhe:--O que é que tu não queres, meu rapaz?--«Não quero
dizer á mamã que venho da escola, porque é mentira. Sei que me hade
ralhar, mas antes quero que me ralhe do que mentir.»--E tens razão,
disse-lhe eu. És um rapaz como se quer.» Apertei-lhe a mão, emquanto
que o outro pequeno, que lhe aconselhava que se desculpasse mentindo,

ia-se embora todo envergonhado.
D'ahi a alguns mezes, passando pela mesma aldeia e tendo de fallar
com o professor, entrei na escola, onde reconheci immediatamente os
meus dois pequenos; o que não quiz mentir, sorria-me, emquanto que o
outro, vendo-me, baixou os olhos. Ao despedir-me interroguei o mestre
sobre os dois alumnos: Oh! disse-me elle, fallando do primeiro, è um
magnifico estudante, um pouco teimoso, mas honrado, sincero, sempre
prompto a confessar as suas faltas e o que é ainda melhor, a reparal-as.
O outro pelo contrario, é mentiroso, covarde e incorrigivel.»--Não me
espanto, disse eu, já tinha tirado o horóscopo d'estas duas creanças; e
contei-lhe o que tinha ouvido.

*Piloto*
Piloto era o mais intelligente e o mais affectuoso dos cães, e o
infatigavel companheiro dos brinquedos das creanças da quinta.
Fazia gosto vel-o atirar-se ao tanque a agarrar o pau, que João lhe
lançava o mais longe que podia; pegava n'elle, mettia-o na bocca e
trazia-o á margem, com grande alegria do pequerrucho e da sua irmã
Joaninha.
Esta brincadeira recomeçava vinte vezes sem cançar nunca a paciencia
do Piloto. Depois eram corridas, festas, gargalhadas, saltos, até que o
assobio do creado da quinta chamava o fiel animal ás suas obrigações:
partia então como um raio, para escoltar as vaccas, que levavam aos
pastos, e impedil-as de entrar no lameiro do visinho.
Quando o hortelão ia vender os legumes ao mercado, era o Piloto o
guarda da carroça; e muito atrevido seria quem saltasse á noite a parede
da quinta.
Uma vez deu prova d'uma extraordinaria sagacidade; um jornaleiro,
que se empregava muitas vezes em levar saccos de trigo da quinta para
casa, tentou de noite roubar um sacco.

Piloto, que o conhecia, não fez a menor demonstração de hostilidade
emquanto o homem seguiu o caminho da quinta, mas, desde que se
afastou tomando por outra estrada, o guarda vigilante agarrou-o pela
blusa sem o largar.
Era como se dissesse: «Onde vaes tu com o trigo de meu dono?»
O ladrão quiz pôr então outra vez o sacco d'onde o tinha tirado; Piloto
não consentiu, e teve-o em guarda, sem o morder nem o
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