Contos dAldeia | Page 6

Alberto Braga
e, quando um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu com o nétinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe subir ao collo!
A creancinha estava com os olhos levantados para o av?, a sorrir, muito alegre, porque julgou que tinha sido para ella, como brincadeira, aquelle grito suffocado--ás armas!

O GALLO PRETO
(A JO?O DE DEUS)
Havia d'antes em Penajoia--terra que ninguem é capaz de ver no mappa geographico de Portugal--uma aula regia de primeiras letras.
A aula era n'uma casa de um só andar, rente do ch?o. Ficava no meio de uma clareíra, e tinha ao lado dois grandes sobreiros, que a abrigavam do sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando sopravam as rajadas do nordeste.
Os alumnos entravam ás oito horas da manh?, saíam ao meio-dia, para jantar; e voltavam depois ás duas horas, para sairem ás cinco da tarde. Alguns d'elles vinham de longe, meia legua, tres quartos de legua de distancia. Eram todos pequeninos e pobres. Saíam ao romper da manh? de suas casas, com o livro debaixo do bra?o, e a louza das contas pendente de um cord?o, lan?ado a tiracollo. No caminho, os que vinham de mais longe, iam-se reunindo aos condiscipulos que encontravam; jogavam o bot?o, ou, se era tempo, trepavam aos castanheiros para cruelmente roubarem os ninhos dos melros e verdelh?es.
O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um velhote rabujo, de pellos nas orelhas, e que pouco mais sabia do que os alumnos, que ensinava.
Um dia perguntei-lhe eu:
--Diga-me cá, sr. Joaquim, que methodo adopta?
--Que methodo?!--exclamou elle, estranhando a pergunta. E depois, levantando as sobrancelhas, e com as sobrancelhas os oculos, fitou-me desconfiado, e respondeu com ar solemne:
--Adopto o methodo do Achiles (do Axiles, foi como elle dísse).
Mas, a despeito de tudo isto, era um tyranno, como o s?o quasi todos os ignorantes.
A aula, como já disse, ficava ao rez do ch?o. A luz entrava por duas frestas, que ficavam acima dois palmos da cabe?a de um homem; porque assim era preciso--explicava o mestre--para que os rapazitos se n?o distrahissem, a olhar para fóra. Ao fundo da sala ficava uma meza de pinho e uma cadeira, que era o logar do mestre. Depois seguiam-se bancadas de pau, collocadas como uma platéa, duas a duas, deixando ao meio um intervallo, por onde entravam os alumnos; e, quando todos tinham entrado, por onde passeiava gravemente o professor, com o livro n'uma das m?os, e na outra um junco.
Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, impallideciam.
E antes de entrarem, quem ali passasse, via-os muitas vezes ainda a repetirem a li??o, trémulos, enfiados e com a mesma coragem de quem tem de subir a uma forca!
O Gabriel era ainda um pequenote de sete annos. Morava ao pé do abbade. E o abbade, que era um santo velhinho, é quem muitas vezes lhe ensinava a li??o. Por isso, e como o pequeno era esperto--ui! diziam os conhecidos, o Gabriel? esperto como um alho!--era o Gabriel que quasi sempre ensinava a li??o aos outros.
--Como se lê esta palavra, Gabriel? dizes-me?--pedia-lhe de uma vez o Jo?o do moleiro.
--Soletra lá.
E principiou o outro:
--P-h-i, pi.
--Qual pi! Tambem eu cuidava! P-h-i, fi--emendou o Gabriel.
--Fi!--exclamou o Jo?o,--Fi! Pêta! Tu enganas-me, Gabriel.
--N?o engano, Jo?o; lê fi-, que foi como me ensinou o sr. abbade.
N'isto, chegou á porta da aula o mestre.
Vinha a palitar-se, e com a face e orelha direita mais vermelhas, porque tinha dormido a sésta.
Chegou á porta e gritou:
--Canzuada, salta para dentro!
E lá entram todos de chapeusinho na m?o, cheios de medo, como um rebanho de ovelhas a entrar para um matadouro.
Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a palmatoria, e depois o len?o escarlate, de chita, fez-se um silencio lugubre na sala.
--Lê tu, Jo?o--principiou elle.
O Jo?o do moleiro foi lendo, mas cada vez que se ia aproximando da terrivel palavra, ia-lhe faltando o animo.
Dizer que P-h-i diz fi, que temeridade! Emfim continuou írremediavelmente:
--E como a sciencia chama... chama...
E ergueu supplicante os olhos para o verdugo.
O mestre tossiu para se dar ao respeito, e bradou:
--Lê para bai-xo, me-ni-no--accentuando as syllabas com um sorriso amea?ador.
--Chamada--continuou o pequeno indeciso--chamada... e terminou em tom mais baixo, com a incerteza de quem n?o sabe o que diz--Philosophia.
--Como?--bradou o mestre, descarregando-lhe com o junco pelas orelhas.--Como?
O pequeno fechou os olhos, encolheu os hombros, e emendou a chorar:
--Pi-lo-so-pi-a.
O professor descarregou segunda juncada, e berrou:
--Pilosópia, burro, pilosópia!
--Pilosópia,--repetiu o pequeno.
Apenas o Jo?o do moleiro disse a palavra, levantou-se o Gabriel do seu logar e declarou com a voz serena e com as lagrimas a saltarem-lhe dos olhos:
--Snr. mestre, quem ensinou a dizer assim ao Jo?o do moleiro fui eu.
Oh! que escandalo, Santo Deus! O mestre ergueu-se de golpe. Os discipulos tremiam como varas verdes; e os mais pequeninos até choravam! Podéra! O que iria acontecer, Nossa Senhora! O mestre ia correr tudo a bolaria, n?o
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