luz do candieiro, a vêr se elle lhe fazia a
mercê de o alumiar bem. Depois levou a mão ao abat-jour e tirou-o
para o lado.
--Deixa o candieiro, meu filho.
--Ora, ora--exclamou o Miguel, fazendo biquinho.
--Deixa, meu filho--pedia a mãe.
--Eu quero vêr o papá.
E debruçou-se outra vez sobre a carta, a procurar com o olhar
investigador um ponto qualquer.
A mãe, n'esse instante, com o mais novinho adormecido nos braços,
olhou para o crucifixo, que tinha pendurado á cabeceira, e principiou a
rezar baixinho, com duas grossas lagrimas a tremerem-lhe á flôr das
palpebras.
--Está aqui o papá?--perguntou o Miguel.
--Está, meu filho, está.
--Na guerra?
--Sim, meu rico amor, na guerra.
O Miguel ficou pasmado a olhar para a Criméa, e exclamou:
--Eu quero ir á guerra dar um beijo ao papá.
--Oh! meu filho!
--O que é a guerra, mamã?
--Não sei, Miguel. O teu papá, quando vier ha de contar-nos, sim?
No dia seguinte, logo depois da ceia, quando o menino já dormia no
regaço da mãe, o Miguel pediu:
--Eu quero ver outra vez o papá.
E foi procurando, pouco a pouco, pelo mappa. Assim que apontou a
Criméa, exclamou radiante:
--Ah! aqui está elle!
E depois, no outro dia, logo á bocca da noite, bateram apressadamente á
porta. Quem seria, Jesus! A mãe do Miguel até tremeu. Pegou na
creancinha e foi vêr quem era. O Miguel--aquillo era já um homem ás
direitas!--ía ao lado da mãe, segurando-se-lhe a uma das prégas do
vestido.
--Ha-de ser o papá--disse elle.
Abriu-se a porta, e no fundo estrellado da noite, sobresaiu a elevada
corpolencia de um soldado. A claridade do luar batia-lhe em cheio no
rosto avincado da fadiga e queimado do sol, com grandes bigodes
espessos. Os botões da fardeta reluziam.
--É aqui que móra a sr.^a Maria La Courdaye?--perguntou elle,
enxugando ao canhão o suor copioso que lhe escorria na testa.
--Sou eu--respondeu a mãe de Miguel.
--É a mulher do Miguel La Courdaye?
--É o papá--disse do lado o pequenito, fitando o soldado com os seus
grandes olhos azues.
--Pois, senhora...
O soldado olhou em redor, peturbado, afflicto, e continuou:
--Pois o Miguel, o 26 dos atiradores, o meu querido e bravo camarada...
--Hein?--balbuciou a pobre mulher.
O sargento apontou com o indicador para o céo, e, approximando-se da
porta, terminou:
--Morreu!
E deitou a correr pela estrada fóra, porque não tinha coragem de assistir
áquelle lance angustioso. Não tinha animo, elle, que no calor da refrega,
affrontára os maiores perigos!
Depois da ceia, o Miguel quiz ainda ver o seu papá. Abriu o mappa, e
quando chegou á Criméa, disse:
--Eh! aqui está elle!
--Já não está, meu filho--respondeu-lhe a mãe a chorar.
O pequenito olhou para ella, e perguntou:
--Então?
--Está no céo!
--Está no... céo? Então vou procurar o céo.
E ficou, por muito tempo, debruçado sobre o mappa, a procurar onde
ficaria o céo para ver o seu papá, até que deixou pender a sua loira
cabecinha sobre o livro, e adormeceu.
O RETRATO DOS PAES
A mala-posta, que seguia do Porto para Braga, passava, ás 7 horas da
manhã, defronte da Izabellinha--aldeola obscura, que fica emboscada
n'uma deveza cerrada de carvalheiras, entre Santiago da Cruz e a
estrada de Barcellos.
Como era subida, os cavallos iam a passo, de redeas bambas, com as
cabeças pendentes, saccudindo com as caudas os moscardos teimosos,
que lhes afferretoavam nos ilhaes. Na imperial do tejadilho os
passageiros cabeceavam com somno. O cocheiro, com o chapéo
desabado cahido para o sobr'ôlho esquerdo, por causa do sol, e com as
redeas entaladas nos joelhos, petiscava lume da pederneira e acendia
pachorrentamente no morrão um cigarro de Xabregas.
--Ainda não enxergo o manco--disse o conductor, com os olhos fitos
n'um atalho, que vinha sahir á estrada.
--Toque-lhe a busina, homem--alvitrou do lado o cocheiro, com a voz
rouca da aguardente--toque-lhe a busina; que, se não apparecer, adeus!
a culpa é d'elles.
O conductor limpou com a palma da mão o boccal da corneta, que
levava ao tiracollo, applicou-o aos beiços, inchou as bochechas d'ar, e
soprou de rijo, tirando um som roufenho, prolongado, com
intermittencias, que se ouvia de longe.
O manco, que estava encostado no cunhal do muro, á sombra d'um
castanheiro, sahiu a meio da estrada.
Ao passar a mala-posta, o conductor atirou-lhe d'alto com uma sacca de
brim, surrada, suja e fechada com uma vareta de ferro, em cuja
extremidade pendia um aluquete triangular. O manco estendeu os
braços para a suspender no ar. Assim que a aparou, sopesou-a duas
vezes, com os braços esticados, e observou:
--Hoje pesa!
--Hoje ha paquete--explicou succintamente o conductor.
E, como a estrada principiava a descer n'uma ladeira ingreme, volteou
com força e á pressa a manivella do travão, e disse para o manco:
--Adeus.
A
Continue reading on your phone by scaning this QR Code
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.