Como atravessei Àfrica | Page 5

Alexandre Alberto da Rocha de Serpa Pinto
três ou quatro fortes
postos no caminho, para segurar a passagem áquelles que, indo comigo
até ao Zumbo, tivessem de regressar. No fim da sessão, houve grande
enthusiasmo, e fôram logo nomeados os chefes que deviam ir a
Benguella, e os que me deviam acompanhar.

Voltei a casa com um tal accesso de febre que perdi a razão,
melhorando ás 6 horas da tarde.
Á noute, annunciáram-me a visita de Munutumueno, filho do rei
Chipopa, o primeiro rei da dinastia Luina.
Mandei-o entrar, e vi um rapaz de 16 a 17 annos, muito elegante e
sympàthico.
Trazia uma calça prêta e uma farda de alferes de cavallaria ligeira, em
muito bom estado. Fez-me profunda impressão ver aquella farda! ¿A
quem teria pertencido? ¿Como teria ido parar ao centro d'Àfrica?
Talvez alguma viuva necessitada encontrasse na venda d'aquelle
objecto, que pertencêra a um espôso estremecido, algumas migalhas de
pão para matar a fome.
Perguntei a Munutumueno ¿como tinha obtido aquella farda? e elle
respondeu-me, que tinha sido presente de um sertanejo Biheno, havia ja
muito tempo.
Indaguei, se não lhe havia encontrado nada nos bolsos, e elle
respondeu-me, que não tinha bolsos. Uma farda de official sem bolsos,
era impossivel.
Pedi-lhe para m'-a deixar examinar, e tendo elle desabotoado o peito,
effectivamente vi que não tinha bôlso ali.
Roguei-lhe, que se voltasse, e comecei a explorar-lhe os bolsos das
abas. Elle estava admirado, porque não sabia que tinha bolsos ali. Em
um d'elles os meus dêdos encontráram um pequenino bilhête.
¿Iria saber a quem tinha pertencido aquella farda?
¿O que conteria aquelle papelinho dobrado que eu tinha diante dos
olhos e não me atrevia a abrir?
Cheio de commoção, desdobrei o papél, e vi n'elle algumas linhas
escritas a lapis, que li àvidamente.

Não pude conter uma gargalhada.
O papél dizia assim:--
"Se lhe não sou indifferente, rogo-lhe o obsequio de me indicar o modo
de nos correspondermos."
Por baixo um nome e uma morada.
Sabia de quem fôra a farda.
O nome era o de um dos meus amigos e antigo condiscìpulo, que hôje
occupa uma distintissima posição n'uma das armas scientìficas do
exêrcito Portuguez.
Um dia em pùblico commetti a indiscrição de pronunciar o nome do
signatario do bilhête, que eu possuo, e ainda que indiscreto fui, não
creio ter de modo algum offendido aquelle nobre official e distincto
cavalheiro.
Uma farda que o talento e a applicação ao estudo fizéram trocar por
outra, mais distincta; que, abandonada ou dada a algum criado, pêla
instabilidade das cousas, foi parar ao centro de Àfrica, creio é cousa
que não desdoura ninguem. Em quanto ao bilhête de amôres, creio bem
que ainda menos o deve vexar.
Infelizes d'aquelles que, aos desoito annos, não escrevêram bilhêtes
assim, e mais infelizes os que depois dos trinta ja os não podem
escrever.
"Aquillo, meu amigo, foi cousa que um papá, ou uma máma, sempre
impertinentes em taes casos, te não deixou entregar, ao sahir do theatro
ou de um baile, á tua Dulcinea d'aquella noute, ou que a tua timidez dos
desoito annos fêz recolher ao bôlso. Imagino, meu amigo, que te deves
ter rido, sabendo que aquelle bilhête esquècido, depois de atravessar os
mares, atravessou aquelles inhòspitos paizes, e andou em companhia de
um prêto no alto Zambeze. É verdade, que, para te consolares, sabes
que esse prêto era filho de rei."

N'esta aventura, eu fui o ùnico tôlo, em ter tido pensamentos tristes, á
vista do bilhête encontrado no bôlso da farda de um alferes de
cavallaria, porque logo devia suppor, que tal bilhête só podia ser um
bilhête d'amôres.
Um alferes de cavallaria, em Portugal, como em tôdos os paizes, é
sempre um fogacho onde as maripôsas v[~e]m queimar as azas
douradas.
Pensando na proposição que acabo de formular, deitei-me cheio de
tristeza, lembrando-me que ja era major.
No dia immediato, recresceu a febre a ponto de eu não poder andar.
Lobossi foi visitar-me, e levou com-sigo o seu mèdico de confiança.
Era um velho, pequeno e magro, de barba e cabello branco.
Principiou elle por tirar do pescôço um cordão onde tinha enfiado oito
metades de caroços de uma fruta qualquér que eu não conhecia.
Começou, com grande recolhimento, a pronunciar umas palavras
màgicas, e atirou com os caroços ao chão. D'estes, uns ficáram com a
parte interna voltada para a terra, outros com a externa. Elle leu
n'aquella disposição, concluindo da leitura, que os meus parentes
mortos se tinham apossado de mim, e que era preciso dar-lhes alguma
cousa para elles me deixarem. Eu aturei tudo com a maior paciencia,
fingindo acreditar o que elle me dizia, e dei-lhe um pequeno presente
de pòlvora.
N'aquelle dia o Gambela deu-me um presente de dez cargas de milho e
massambala.
Estando concluido o meu acampamento, mudei para elle.
No dia 29 de Agosto, a
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