Chronica de el-rei D. Pedro I | Page 9

Fernão Lopes
sorrindo-se,
disse que fizeram bem, que tomar queriam mister de ladrões e matar
homens pelos caminhos, de se ensinarem primeiro nos judeus, e depois
viriam aos christãos.
E em dizendo estas e outras palavras, passeava perante elles de uma
parte á outra, e parece que lembrando-lhe a criação que n'elles fizera, e
como os queria mandar matar, vinham-lhe as lagrimas aos olhos, por
vezes. Depois, tornava asperamente contra elles, reprehendendo-os
muito do que feito haviam. E assim andou por um grande espaço.
Os que hi estavam, que aquesto viam, suspeitando mal de suas razões,
afincavam-se muito a pedir mercê por elles, dizendo que por um judeu
astroso não era bem morrerem taes homens, e que bem era de os
castigar por degredo ou outra alguma pena, mas não mostrar contra
aquelles que criara, pelo primeiro erro, tão grande crueza.
El-rei, ouvindo todos, respondia sempre que dos judeus viriam depois
aos christãos.
Em fim d'estas e outras razões, mandou que os degolassem.
E foi assim feito.

*CAPITULO VII*
_Como el-rei quizera metter um bispo a tormento porque dormia com
uma mulher casada_.

Não sómente usava el-rei de justiça contra aquelles que razão tinha,
assim como leigos e semelhantes pessoas, mas assim ardia o coração
d'elle de fazer justiça dos maus, que não queriam guardar sua
jurisdicção, aos clerigos tambem, de ordens pequenas, como de maiores.
E se lhe pediam que o mandasse entregar a seu vigario, dizia que o
puzessem na forca e que assim o entregassem a Jesus Christo, que era
seu Vigario, que fizesse d'elle direito no outro mundo. E elle por seu
corpo os queria punir e atormentar, assim como quizera fazer a um
bispo do Porto, na maneira que vos contaremos.
Certo foi, e não o ponhaes em duvida, que el-rei, partindo de entre
Douro e Minho, por vir á cidade do Porto, foi informado que o bispo
d'esse lugar, que então tinha gram fama de fazenda e honra, dormia
com uma mulher de um cidadão, dos bons que havia na dita cidade, e
que elle não era ousado de tornar a ello, com espanto de ameaças de
morte que lhe o bispo mandava pôr.
El-rei, quando isto ouviu, por saber de que guisa era, não via o dia que
estivesse com elle, para lh'o haver de perguntar.
E logo, sem muita tardança, depois que chegou ao logar, e houve
comido, mandou dizer ao bispo que fosse ao paço, que o havia mister
por cousas de seu serviço. Falou com seus porteiros, que depois que o
bispo entrasse na camara, lançassem todos fóra do paço, tambem os do
bispo como quaesquer outros, e que ainda que alguns do conselho
viessem, que não deixassem entrar nenhum dentro, mas que lhe
dissessem que se fossem para as pousadas, cá elle tinha de fazer uma
cousa em que não queria que fossem presentes.
O bispo, como veiu, entrou na camara onde el-rei estava, e os porteiros
fizeram logo ir todos os seus e os outros, em guisa que no paço não
ficou nenhum, e foi livre de toda a gente.
El-rei, como foi áparte com o bispo, desvestiu-se logo e ficou em uma
saia de escarlata, e por sua mão tirou ao bispo todas as suas vestiduras,
e começou de o requerer que lhe confessasse a verdade d'aquelle
maleficio em que assim era culpado: e em lhe dizendo isto, tinha na
mão um grande açoute para o brandir com elle.

Os criados do bispo, quando no começo viram que os deitavam fóra, e
isso mesmo os outros todos, e que nenhum não ousava lá de ir, pelo que
sabiam que o bispo fazia, dês ahi juntando a isto a condição de el-rei e
a maneira que em taes feitos tinha, logo suspeitaram que el-rei lhe
queria jogar de algum mau jogo, e foram-se á pressa ao conde velho, e
ao mestre de Christo Dom Nuno Freire, e a outros privados de seu
conselho, que accorressem asinha ao bispo.
E logo tostemente vieram a el-rei, e não ousaram de entrar na camara,
por a defeza que el-rei tinha posta, se não fôra Gonçalo Vasques de
Goes, seu escrivão da puridade, que disse que queria entrar por lhe
mostrar cartas que sobrevieram de el-rei de Castella a gram pressa. E
por tal azo e fingimento houveram entrada dentro na camara, e acharam
el-rei com o bispo em rasões, da guisa que havemos dito, e não lh'o
podiam já tirar das mãos. E começaram de dizer que fosse sua mercê de
não pôr mão n'elle, cá por tal feito, não lhe guardando sua jurisdicção,
haveria o papa sanha d'elle; demais, que o seu povo lhe chamava algoz,
que por seu corpo justiçava os homens, o que não convinha a elle de
fazer, por muito malfeitores que fossem.
Com estas e outras rasões, arrefeceu el-rei
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