As Minas de Salomão | Page 7

H. Rider Haggard
nos
braços--quem hei de eu vêr? O José Silveira!
José Silveira--ou antes o seu miseravel esqueleto, com todos os ossos
rompendo para fóra da pelle, mais sêcca que pergaminho e amarella
como gema de ovos. Os olhos saltavam-lhe da cara, á maneira de dois
bugalhos de sangue. E o cabello que eu lhe vira grisalho, vinha branco,
todo branco como uma bella estriga de linho.
--Agua! gemeu elle. Agua, pelas cinco chagas de Christo!
O infeliz tinha os beiços horrivelmente estalados, e entre elles a lingua
pendia-lhe, toda inchada e toda negra! Dei-lhe agua com leite, de que
bebeu talvez dois quartilhos, a grandes sorvos, e sem parar. Foi
necessario arrancar-lhe a vasilha. Depois cahiu de costas, rompeu a
delirar. Ora gemia, ora gritava. E era sempre sobre as serras de Suliman,
os diamantes e o deserto!
Levei-o para dentro da tenda: e, com o pouco que tinha, fiz o pouco que
podia. O homem estava perdido. Rente da meia noite socegou. Eu,
esfalfado, adormeci. Acordei de madrugada; e, ao primeiro alvor da luz,
dou com elle (fórma sinistra!) de joelhos, á porta da barraca, de olhos
cravados para o longe, para o deserto! N'esse instante, um raio de sol
que nascia frechou através do vasto descampado, e foi bater ao fundo, a
cem milhas de nós, o pico mais alto das serras de Suliman. O homem
soltou um grito, atirou desesperadamente para diante os dois braços de
esqueleto:
--Lá estão ellas, Santo Deus, lá estão ellas!... E dizer que não pude lá
chegar! Parecem tão perto! Logo alli, uns passos mais... E agora
acabou-se, estou perdido, ninguem mais póde lá ir!
De repente emmudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a face
livida e como esgazeada por uma idéa brusca.

--Ó camarada, onde está vossê?... Já o não distingo, vai-me a fugir a
vista!
--Estou aqui; socegue, homem.
--Tenho tempo para socegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou
a morrer. Vossê tem sido bom commigo, camarada... E para que havia
eu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos alguem se
aproveita! Talvez vossê lá possa chegar, se conseguir atravessar esse
deserto que matou o meu pobre creado, que me está a matar a mim...
Começou então a procurar tremulamente dentro do peito da camisa.
Tirou por fim uma especie de bolsa de tabaco, já velha, apertada com
uma correia. Estava tão fraco que as suas pobres mãos nem puderam
desfazer o nó. Fez-me um gesto, um gesto exhausto, para que eu o
desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarellado, com linhas
escriptas, n'um tom antiquissimo, de côr de ferrugem. E dentro do
farrapo estava um papel dobrado.
--O papel, murmurou elle n'uma voz que se extinguia, é a cópia do que
está escripto no trapo. Levou-me annos a decifrar, a entender... Foi um
antepassado meu, um dos primeiros portuguezes que vieram a
Lourenço Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acolá
n'aquellas serras. Chamava-se D. José da Silveira, e já lá vão trezentos
annos... Um escravo que ia com elle, e que ficára a esperar, do lado de
cá do monte, vendo que o amo não voltava procurou-o, foi dar com elle
morto, e trouxe para Lourenço Marques o bocado de linho que tinha
letras. Desde então ficou guardado na nossa familia. Ha trezentos annos!
E ninguem pensou em o decifrar até que eu me metti n'isso...
Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue lá, ás
malditas serras! Será então o homem mais rico d'este mundo! O mais
rico, o mais rico! Tente vossê, camarada... Não dê o papel a ninguem!
Vá vossê!
As ultimas palavras sahiram como um debil sopro. Cahiu de costas,
recomeçou a delirar. D'ahi a uma hora tudo acabou, Deus tenha a sua
alma em descanço! Morreu serenamente, sem esforço e sem dôr. Por
minhas mãos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos

por cima do peito. Ao menos assim não darão com elle os chacaes.
Foi ao pé da cova, onde o desgraçado jazia, que examinei o documento.
Era, como disse, um farrapo de linho, rasgado d'uma fralda de camisa e
do tamanho d'um palmo. No topo tinha os traços de um mappa, ou de
um roteiro, rapidamente e toscamente lançados. Era pouco mais ou
menos isto:
[Figura]
Por baixo vinham linhas escriptas, n'uma letra muito antiga e côr de
ferrugem. Para mim eram inintelligiveis. Mas o papel continha a
decifração, e dizia assim:
«Estou morrendo de fome, n'uma cova da banda norte d'um d'estes
montes a que dei o nome de «Seios de Sabá», no que fica mais a sul.
Sou D. José da Silveira, e escrevo isto no anno de 1590, com um
pedaço d'osso, n'um farrapo da camisa, tendo por tinta o meu sangue.
Se o meu escravo aqui voltar, reparar n'este
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