As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 9

Ramalho Ortigão
de cabellos humidos e embrulhados, em fermenta??o.
Dentro da loja uma bella mulher risonha que se apeou de um coupé, embrulhada em fina renda branca, debru?a-se no mostrador e aproxima da m?o do caixeiro que lhe segura um brinco a polpa aveludada da sua orelha carnuda, sensual, de comilona feliz.
Os espelhos dos angulos da sala e os que forram as vitrines reproduzem infinitamente para todas as direc??es essa cabe?a bonita envolta em renda, e mostrada ao mesmo tempo de todos os lados, de frente, de perfil, de tres quartos, acompanhada sempre da m?o que enfia o brinco.
As macilentas Margaridas de olhos pisados v?o ver em cada noite esse espectaculo de tenta??o, em quanto na esquina fronteira, na Casa Havaneza, os Doutores Faustos accendem os seus charutos, e muitos diabinhos invisiveis volitam no ar dizendo segredos, deitando de fóra impudentemente as linguinhas de chamma e co?ando os seus piqueninos chavelhos com freneticas contrac??es aduncas, como quem se sente inteiramente cheio de phosphoro e de alacridade.
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A peregrina??o a Roma foi promovida pelos chefes do partido clerical com um zelo fervoroso, que acabamos de ver coroado com o mais prospero exito.
Suas excellencias annunciáram com a devida antecedencia a celebra??o do jubileu pontificio; facilitaram a romagem com esclarecimentos que fariam a gloria do Guide Joanne; conseguiram o estabelecimento de comboyos de recreio, ida e volta, pre?os reduzidos, de Lisboa a Roma, com escala por Nossa Senhora de Lourdes; deram os pre?os dos hoteis e dos restaurantes romanos, a regimen de peixe ou de carne, para as grandes bolsas, para as bolsas medias e para as pequenas bolsas; fixaram finalmente a toilette, explicando que as senhoras deveriam apresentar-se com vestidos de seda preta e véos de renda, e os homens de uniforme ou de casaca preta e gravata branca.
Porque--suas excellencias o explicáram--o santissimo padre n?o recebe sen?o senhoras de rendas e homens de casaca. Os peregrinos vestidos de sacco e burel, as peregrinas cingidas pela estamenha e pela corda de esparto, n?o sobem a escada do Vaticano. Os pés privilegiados para pisarem os tapetes do Vigario de Christo na terra s?o os pés mimosos e aristocraticos, cal?ados em escarpins de setim ou de polimento. Os sapatos ferrados dos caminheiros plebeus, as sandalias espalmadas das peccadoras que n?o vem de passeiar em victoria ou em caleche á Daumont, de volta do Corso ou do Pincio, mas que chegam das escabrosas veredas da miseria; as alpagartas dos penitentes que vieram trilhando abrolhos sangrentos no aclive da via dolorosa, s?o generos de cal?ado expulsos pelos enxota-c?es, e expulsos com os respectivos pés, porque tambem se n?o entra descal?o no Vaticano como se entra no templo em Jerusalem, ou na mesquita de Santa Sophia em Constantinopla.
Facultados t?o interessantes esclarecimentos muitas pessoas partiram a receber as ben??os paternaes offerecidas pelo pontifice ás rendas e ás casacas pretas do orbe christ?o.
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Alguns episodios d'essa piedosa viagem s?o já do dominio da imprensa. Da esta??o do caminho de ferro de Braga sairam os romeiros entre acclama??es sympathicas e vivas enthusiasticos á santa religi?o e ao summo pontifice Pio IX. Em compensa??o na gare do Porto foram os mesmos romeiros acolhidos aos gritos n?o menos enthusiasticos de ?Fóra os hypocritas! fóra os patifes!? Por este ultimo successo damos a suas excellencias os nossos cordeaes parabens, porque suppomos que elles viajam com um fim de humildade e mortifica??o, e que lhes ser?o agradaveis todas as manifesta??es publicas tendentes a exacerbar-lhes o pungimento expurgante das duras penitencias.
Em Lourdes, refere o telegramma de um sacerdote ao jornal A Na??o, que á vista da gruta toda a romagem rompera em pranto e se prostrára em joelhos. Devemos crêr que esta prostra??o fosse passageira, n?o só porque um telegramma subsequente nos annuncia a chegada dos peregrinos á cidade eterna, mas ainda porque em Lourdes a belleza da paisagem, a exuberancia da vegeta??o, o rumor das aguas, as perspectivas sombrias e flexuosas da floresta, a clara alegria do restaurante, de gelosias abertas, de stores desdobrados ao sol, com a sua grande taboleta _á Notre Dame de Lourdes_, e os seus subtitulos em caracteres appetitosos Diners à la carte et déjeuners à la fourchette,--gras et maigre, tudo convida os espiritos ascetas a uma concilia??o amavel com a carnalidade mundana.
Além do aspecto das coisas, as exterioridades das pessoas contribuem tambem poderosamente para arrancar os adventicios ás attitudes prostradas e contemplativas.
Os comboyos de Paris chegam e partem cheios de alegres touristes de um e outro sexo.
S?o graciosas peccadoras com adoraveis toilettes de viagem; chapeus de grossa palha de f?rma aguda e aba estreita derrubada sobre os olhos, descobrindo a nuca, em que se enrolam as tran?as loiras, e a nascen?a do cabello junto do pesco?o, com os seus flocosinhos de pennugem crespa e doirada penetrada de luz; os vestidos decotados no collo em linhas quadradas como
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