As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 8

Ramalho Ortigão
comprehenderam que este estado geral dos espiritos deveria come?ar a fatigar os habitantes de Lisboa, e dotaram-os com sofás. Para o anno os estancos requintar?o ainda as condi??es de commodidade e havemos de ver os estanqueiros sairem ao encontro dos desejos do publico com colch?es. Chegaremos á Casa Havaneza, despir-nos-hemos, poremos a camisa de dormir e fumaremos os nossos carvajales deitados em camas, á porta.
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A ourivesaria do largo das Duas Egrejas teve o successo de uma institui??o. Ella é como um templo ao luxo, como um altar ao deus Ouro, tal como o conceberiam, erigido com todo o esplendor do culto, os Pharaós da Rua dos Capellistas. A arma??o interior da loja é feita em Paris segundo os elegantes modelos das joalherias da rua de la Paix ou do Palais Royal. Armarios da mais verosimil imita??o de ebano sobre um parquet brunido. Tecto de um azul idealisado, representando um trecho de ceu coberto de creme.
Nas vitrines, de um só cristal immaculado, desdobram-se em degraus, como n'um throno de lausperenne, as prateleiras de veludo cor de cereja, de cuja suavidade macia e ardente destacam em vigoroso relevo as joias em exposi??o. A um lado pendem em meada as correntes de relogio exhibidas como o corpo de delicto de uma quadrilha de pick-pocket apanhados com o roubo. Suspensos nas extremidades das correntes pousam em baixo os breloques, n'um grande molho confuso, como se adornassem um collete monstro sobre o estomago collectivo e proeminente do capital.
Nos logares mais proximos de quem olha est?o os miudos objectos preciosos, as finas pedras raras, os olhos de gato castanhos e amarellos em pequenas elypses cujo grande eixo é indicado por uma linha que separa nitidamente as duas c?res; as perolas negras de um tom profundo, que n?o é o preto, é o infinitamente escuro, como a noite; as perolas c?r de rosa sobresaindo em cercaduras de brilhantes como capsulas cabalisticas feitas de substancias extraidas de uma cristalisa??o mimosa de beijos ternos e de perfumes castos.
No segundo plano apparecem os ornamentos de mais vulto: os broches tremelusentes e vivos como esparrinhaduras de diamantes e de rubis chispando no ar; as flores imaginosas de petalas de aljofar ou de saphira, orvalhadas de pulverisa??es de esmeralda; os medalh?es em camafeus preciosos sobre pedras de tres c?res nos tres planos da esculptura; as eflorescencias phantasticas das onix, das granadas, das malaquites, das opalas; em raios como estrellas, em sobreposi??es como pinhas, listradas, rajadas, mosquetadas, affestoadas, zebradas com todas as scintilla??es do prisma.
Mais longe offerecem-se os braceletes nos seus estojos c?r de lilaz. Uns s?o fortes e duros como os violentos desejos, outros vaporosos e finos como aspira??es platonicas. Nas suas variadas formas teem physionomias, revelam temperamentos. Ha-os lascivos e ardentes, colleados em quatro roscas de um ouro fulvo, terminando n'uma cabe?a de cobra esmagada por um esbraseamento de rubi. Ha-os contemplativos e ingenuos, de uma c?r limphatica, salpicados de frias e innocentes turquezas. Tambem os ha trasbordantes de uma vida farta e victoriosa, largos, rendilhados, superabundantes de cores, expansivos e triumphaes como orchestras, soprando hymnos de um enthusiasmo sanguineo, vermelho, despotico.
Em outra vitrine está a exposi??o das pratas: os centros de mesa representando palmeiras, á sombra das quaes se empinam cavallos em pello, que dever?o parecer relinchar de amor no meio das sobremesas, entre as frutas empilhadas geometricamente em pyramide sobre ta?as de filigrana e os gelados transparentes impregnados de luz, tremulos, c?r de topasio; as bacias de m?os, de desenhos bysantinos repoussés; os jarros de forma etrusca; os assucareiros graves e concentrados como vasos de particulas sagradas; e os grossos bules barrigudos e polidos, nos quaes se espelham os rostos em caricatura monstruosa, com bochechas obscenas, narizes que incham como focinhos de vitela e bocas que riem até as nucas.
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Ao accender das luzes, ás oito horas e pouco depois, magotes compactos de espectadores estacionam defronte da vitrine das joias. Demoram-se mais as mulheres: mulheres de amanuenses e de pequenos empregados, costureiras das modistas, que saem a essa hora das officinas quando n?o ha ser?o.
Candieiros de gaz com fortes reflectores n?o só alumiam intensamente os objectos expostos nas vitrines, mas alumiam tambem peda?os de espectadores, em que se podem fazer exames minuciosos, de microscopio.
As mulheres magras, pallidas, que olham, teem as faces oleosas da transpira??o do trabalho de 14 horas em pequenos gabinetes abafados, cheios de exhala??es mornas de roupa suja. Na m?o esquerda o dedo que aponta para um colar de mil libras tem uma nodoa escura, esfarpada, produzida pelas picaduras da agulha, e o dedo polegar mostra uma unha curta atrophiada no habito de esmagar costuras. Os chapeus adornam-se com velhas flores em terceira m?o, desbotadas e tristes; e das cuias, caidas sobre a mancha gordorosa que tem entre as espaduas a alpaca poida dos vestidos, sae um cheiro acido
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