As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 6

Ramalho Ortigao
magestade resolveu, em vista de t?o honrosas informa??es, levar comsigo os dois esperan?osos jovens e encarregar-se da sua educa??o. Foram esses dois rapazes os que entraram em trinmpho na cidade do Porto, indo em carruagem descoberta e precorrendo as ruas adiante da carruagem de sua magestade. N?o sabemos se durante todo o precurso do cortejo os rapazes se conservaram, como deviam, sempre de joelhos. O que �� certo �� que o quadro a que nos referimos commoveu muito as pessoas que o presencearam, segundo asseveram todas as noticias do Porto e de Vidago.
Folgamos de poder completar as informa??es colhidas por el-rei ��cerca dos seus pupillos com o fructo das nossas proprias indaga??es, porque �� de saber que os rapazes de joelhos n?o apparecem unicamente a sua magestade, apparecem a todos aquelles que viajam nas estradas do Minho e de Traz-os-Montes. O que escreve estas linhas por mais de uma vez se encontrou com o commovente quadro, n?o deixando nunca de o saudar com um expressivo meneio do seu bord?o, perante o qual os rapazes em joelhos se punham em p�� com uma velocidade cheia de convic??o e de enthusiasmo. E n��s, ent?o, diziamos-lhes com a mais pesada voz:
--Ah! poltr?es! Ah! covardes! Ah! sapos! Que se torno a encontrar algum de joelhos deante de mim, applico-lhe uma carga de pau, que lhe ponho o lombo mais negro que o de um melro! Teem o atrevimento de pedir esmola, seus sicarios?... E ainda por cima se me desculpam com o exemplo de Jesus Christo?! Nosso Senhor tambem pediu!!... Em que escola aprendeste tu a cartilha, meu grande camello?... O que tu merecias �� que eu te metesse uma zaragatoa de pimenta n'essa bocca para te ensinar a blasphemar! Jesus pediu esmola, mas n?o foi para que tu a pedisses tambem, grande vadio! Jesus pediu esmola para te honrar com a sua confraternidade, para te mostrar que apesar de teres lendeas, de trazeres as orelhas sujas e de andares descal?o, tens, pelo facto de ser homem, uma origem divina e que te deves respeitar tanto a ti proprio como se fosses um imperador ou um rei. Para te tornares digno do grande obsequio que te fez Jesus andando pelo mundo a pregar a igualdade e a fraternidade de todos os homens, feitos, segundo o mesmo Jesus, �� imagem e similhan?a de Deus, a tua obriga??o �� lavar a cara e as orelhas, conquistar pelo trabalho uns sapatos para esses p��s e trazer-me essa cabe?a levantada e firme como quem tem a convic??o de ser tanto como qualquer outro. Foi para isso que te ensinaram que Deus andou pelo mundo a pedir, percebeste, grande mariola? Deus pediu para se parecer comtigo, dando-te por esse modo a aspira??o de te pareceres egualmente com elle fazendo-te uma pessoa limpa e honesta. Deus consentiu em pedir pela mesma raz?o que consentiu em ser crucificado, n?o para dar o exemplo da mendicidade e do homicidio, mas sim ao contrario para que a sociedade se reconstituisse no sentido de n?o tornar a haver quem enforcasse nem quem pedisse. O p?o nosso de cada dia ganha-se com essas duas pernas que Deus te deu para trabalhares e n?o para te p?res de joelhos nos caminhos a pedir esmola a quem passa. Jesus nunca se ajoelhou sen?o debaixo do trabalho representado pela sua cruz ou diante do amor representado por sua m?e. De joelhos perante a minha for?a ou perante o meu dinheiro tu ��s indigno da tua gerarchia d'homem e n?o passas de uma besta sordida e immunda.
Depois de praticas da natureza d'esta, que nunca deixamos de fazer aos rapazes que nos appareceram ajoelhados pelos caminhos, e as quaes praticas sempre acompanhamos de temerosos gestos mostrando o punho cerrado e os bicos dos nossos sapatos--de tres solas repregados de terriveis tachas vingadoras, de duas azas, do tamanho de moscardos--concluiamos por uma eloquente perora??o perguntando aos rapazes onde era a escola.
Temos a honra de informar sua magestade el-rei que os rapazes que apparecem de joelhos pelas estradas n?o sabem nunca onde fica a escola.
Os paes n?o os ensinam a ler. Creados na abjec??o da mendicidade, habituados a fingir, a choramigar, a carpir, costumados desde pequenos a serem maltratados, repellidos, injuriados, tornam-se homens servis, rasteiros, malevolos, vingativos, mandri?es e covardes.
S?o elles os que em maior numero contribuem para o consumo das facas de ponta, para o exercicio das policias correccionaes, para o repovoamento successivo das cadeias e dos hospitaes.
Sua magestade esqueceu que, em quanto esses rebentos da pregui?a, esses embri?es do vicio e da miseria se ajoelhavam aos seus p��s, outros pequenos cidad?os uteis estavam na escola ou nos casaes circumvisinhos, uns aprendendo a ler, outros ajudando as suas m?es a metter o p?o ao forno, a deitar o feno ��s vacas, a acarretar a lenha, a enfeichar as medas ou a
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