ha coisa de vinte annos.
A espelunca achava-se estabelecida no lindo cottage do Mallen, na Praia dos Inglezes, com um terra?o sobre o mar e a entrada pela rua da Senhora da Luz.
No meio do grande sal?o de baile estava armado o jogo sobre uma vasta mesa de pano verde illuminada do tecto por um lustre. Em torno da mesa achava-se reunida a parte masculina da melhor sociedade do Porto e da provincia do Douro e do Minho a banhos na Foz, uns, junto da mesa, sentados, outros em p�� por traz d'esses, formando tres ou quatro circulos concentricos.
A um topo da mesa um cavalheiro esqueletico, de faces macilentas, adornado de uma longa p��ra grisalha, puxava para junto de si por meio de uma pequena rapadeira de mogno polido, em f��rma de ensinho, o dinheiro das paradas espalhado no panno verde, e pagava a importancia das apostas.
Defronte d'este prestavel individuo, no outro topo da mesa, um cavalheiro, mais gordo, ainda que n?o mais solicito, e de aspecto egualmente veneravel, punha as cartas na mesa com m?os finas, particularmente bem tratadas e real?adas por dois bellos cachuchos em que scintillava um olho de gato e um rubi.
Informei-me da regra do jogo com as pessoas respeitaveis e fidedignas que tinha mais proximo de mim.
Eis a regra: Tiravam-se do baralho duas cartas, que o homem das m?os finas collocava na mesa ao lado uma da outra. L�� estava, por exemplo, o trez de espadas a um lado, e o rei de copas ao outro. A gente escolhia, para apostar por ella, a carta que queria, e collocava-lhe ao lado o pre?o da aposta. Depois do que, ganhava o rei ou ganhava o terno, segundo era um rei ou um terno d'outro naipe a primeira d'essas duas cartas que em seguida sahia do baralho.
Devo dizer, �� face de Deus e dos homens, que nunca em minha vida me expuzeram negocio que se me figurasse mais intelligivel, mais recto e mais claro! Algumas vezes tenho tido que pedir aos diversos poderes do Estado alguns esclarecimentos �� cerca do jogo do machinismo administrativo, e cumpre-me dizer, sem com isto pretender desgostar ninguem, que jamais das regi?es officiaes recebi informa??es t?o lucidas e t?o leaes como aquellas que sobre as leis do Monte me foram cavalheirosamente ministradas na apreciavel batota a que me refiro.
De um s�� relance e em meio minuto comprehendi o problema todo com uma profundidade maravilhosa, e, sem perda de mais um instante, tirei 100$000 r��is que tinha n'uma algibeira e colloquei-os pressuroso sobre o trez de espadas que se achava na mesa.
Telintaram libras, de parte a parte, postas pelos circumstantes para a direita ou para a esquerda das cartas.
O homem da p�� de mogno polido, erguendo para o meu lado o bico da sua p��ra grisalha, perguntou-me, indicando o meu dinheiro:
--Mata o rei?
Ao que eu respondi denodadamente e com voz firme:
--Mato-o, sim senhor!
Esta phrase pareceu fazer uma certa impress?o no auditorio. Houve um silencio. Um desembargador da rela??o do Porto, anci?o de oculos d'ouro e de grande calva sacerdotal, retirou com gesto adunco de cima das cartas 3$000 que tinha posto.
O cavalheiro das lindas m?os tossiu ligeiramente, voltou o baralho, e principiou a extrahir com lentid?o as cartas, a uma por uma, do masso que comprimia nos dedos.
A quarta ou quinta figura estrahida era o rei de espadas.
Eu tinha perdido os meus 100$000 r��is. Ganhava-os precisamente um illustre professor da Escola Polytechnica, que fizera contra o terno uma parada egual �� minha.
Esta decis?o da sorte--eu o confesso--n?o me regosijou sen?o de um modo bem caracteristicamente mediocre.
Resolvi por��m interrogar mais algumas vezes o acaso, e perdi consecutivamente quanto dinheiro tinha no bolso, ou fosse a importancia de perto de meio anno de collabora??o n'um jornal americano,--somma recebida n'esse mesmo dia.
Fiquei na batota at�� pela manh?.
Por uma janella aberta sobre o terra?o a luz c?r de perola da madrugada entrava humedecida e salgada pela vira??o maritima. As banheiras, filhas e mo?as da Maria da Luz, armavam as barracas na praia, cantando ao longe em terceiras, n'um c?ro argentino de sopranos, uma barcarolla local. Os primeiros preg?es matutinos dos vendilh?es ambulantes penetravam do lado da rua pelas fendas horisontaes das gelosias, que o clar?o da manh? pautava luminosamente d'azul.
Na sala esvasiada de gente oscillava ainda, esfarrapado, o ar quente da noitada, impregnado do fumo do tabaco e dos cheiros acres do suor e da cerveja asedada no fundo dos copos dispersos no bal??o do buffette.
O ch?o estava alastrado de lama secca, de pontas de cigarros que a saliva enodoara de amarello, e de charutos mordidos e mastigados raivosamente pelos pontos.
O homem das bellas m?os aristocraticas tinha as unhas orladas de preto e o collarinho esverdinhado de transpira??o.
O cavalheiro da p��ra tivera com o romper do dia um accesso de tosse, e depois de haver durante a noite
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