As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12) | Page 9

Ramalho Ortigão
amantes, folgamos de veras com a
satisfação intima e cordial que sua magestade el-rei houve por bem
experimentar e redigir em prosa official, ao ver os reditos do Estado
felizmente acrescentados com algumas cadeiras e alguns cobres,
agilmente surripiados pelos representantes da lei a viciosos cidadãos,
improvidos e desapercebidos.
No Porto o zêlo policial n'esta diligencia chegou ao ponto de emboscar
nas ruas os esbirros para prender os jogadores no acto de entrarem para

as jogatinas.
Não pretendemos julgar o ponto de vista das auctoridades constituidas
sobre o assumpto batotas, porque estamos convencidos de que essas
auctoridades, morigeradas e pudibundas, não foram nunca ás casas de
jogo, o que as desarma de toda a habilitação precisa para se poder
discutir com ellas sobre esta questão.
* * * * *
O que escreve estas linhas esteve pela derradeira vez n'uma batota, em
S. João da Foz, ha coisa de vinte annos.
A espelunca achava-se estabelecida no lindo cottage do Mallen, na
Praia dos Inglezes, com um terraço sobre o mar e a entrada pela rua da
Senhora da Luz.
No meio do grande salão de baile estava armado o jogo sobre uma
vasta mesa de pano verde illuminada do tecto por um lustre. Em torno
da mesa achava-se reunida a parte masculina da melhor sociedade do
Porto e da provincia do Douro e do Minho a banhos na Foz, uns, junto
da mesa, sentados, outros em pé por traz d'esses, formando tres ou
quatro circulos concentricos.
A um topo da mesa um cavalheiro esqueletico, de faces macilentas,
adornado de uma longa pêra grisalha, puxava para junto de si por meio
de uma pequena rapadeira de mogno polido, em fórma de ensinho, o
dinheiro das paradas espalhado no panno verde, e pagava a importancia
das apostas.
Defronte d'este prestavel individuo, no outro topo da mesa, um
cavalheiro, mais gordo, ainda que não mais solicito, e de aspecto
egualmente veneravel, punha as cartas na mesa com mãos finas,
particularmente bem tratadas e realçadas por dois bellos cachuchos em
que scintillava um olho de gato e um rubi.
Informei-me da regra do jogo com as pessoas respeitaveis e fidedignas
que tinha mais proximo de mim.

Eis a regra: Tiravam-se do baralho duas cartas, que o homem das mãos
finas collocava na mesa ao lado uma da outra. Lá estava, por exemplo,
o trez de espadas a um lado, e o rei de copas ao outro. A gente escolhia,
para apostar por ella, a carta que queria, e collocava-lhe ao lado o preço
da aposta. Depois do que, ganhava o rei ou ganhava o terno, segundo
era um rei ou um terno d'outro naipe a primeira d'essas duas cartas que
em seguida sahia do baralho.
Devo dizer, á face de Deus e dos homens, que nunca em minha vida me
expuzeram negocio que se me figurasse mais intelligivel, mais recto e
mais claro! Algumas vezes tenho tido que pedir aos diversos poderes
do Estado alguns esclarecimentos á cerca do jogo do machinismo
administrativo, e cumpre-me dizer, sem com isto pretender desgostar
ninguem, que jamais das regiões officiaes recebi informações tão
lucidas e tão leaes como aquellas que sobre as leis do Monte me foram
cavalheirosamente ministradas na apreciavel batota a que me refiro.
De um só relance e em meio minuto comprehendi o problema todo com
uma profundidade maravilhosa, e, sem perda de mais um instante, tirei
100$000 réis que tinha n'uma algibeira e colloquei-os pressuroso sobre
o trez de espadas que se achava na mesa.
Telintaram libras, de parte a parte, postas pelos circumstantes para a
direita ou para a esquerda das cartas.
O homem da pá de mogno polido, erguendo para o meu lado o bico da
sua pêra grisalha, perguntou-me, indicando o meu dinheiro:
--Mata o rei?
Ao que eu respondi denodadamente e com voz firme:
--Mato-o, sim senhor!
Esta phrase pareceu fazer uma certa impressão no auditorio. Houve um
silencio. Um desembargador da relação do Porto, ancião de oculos
d'ouro e de grande calva sacerdotal, retirou com gesto adunco de cima
das cartas 3$000 que tinha posto.

O cavalheiro das lindas mãos tossiu ligeiramente, voltou o baralho, e
principiou a extrahir com lentidão as cartas, a uma por uma, do masso
que comprimia nos dedos.
A quarta ou quinta figura estrahida era o rei de espadas.
Eu tinha perdido os meus 100$000 réis. Ganhava-os precisamente um
illustre professor da Escola Polytechnica, que fizera contra o terno uma
parada egual á minha.
Esta decisão da sorte--eu o confesso--não me regosijou senão de um
modo bem caracteristicamente mediocre.
Resolvi porém interrogar mais algumas vezes o acaso, e perdi
consecutivamente quanto dinheiro tinha no bolso, ou fosse a
importancia de perto de meio anno de collaboração n'um jornal
americano,--somma recebida n'esse mesmo dia.
Fiquei na batota até pela manhã.
Por uma janella aberta sobre o terraço
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