As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12) | Page 8

Ramalho Ortigão
de renda tal predio, assas desconceituado no publico
pela falta de commodos que offerece para habitação, de familia, pelos
maus cheiros que n'elle grassam, pela enorme melancolia mesenterica
que d'elle transsuda e pela aterradôra quantidade de carochas e de ratos
de cano e de throno, que o infestam, sevandijam e conspurcam.
Antonio Rodrigues Sampaio era um escriptor de primeira ordem no
meio de um jornalismo onde os escriptores cada vez se vão tornando
mais raros. Elle foi um dos artistas que mais gloriosamente serviu a sua
patria escrevendo bem a sua lingoa, e foi, além d'isso, entre os homens
politicos do seu tempo aquelle que mais altas e mais fortes qualidades
de espirito, de coração e de caracter sacrificou ás instituições vigentes.
O chefe dessas instituições, no dia do enterro de Sampaio, ia mitigar a
sua dôr por essa morte, ouvindo a opera em S. Carlos.
No dia do enterro de Saraiva de Carvalho o mesmo augusto principe ia
para o Gymnasio ver o atirador Paine quebrar globos de cristal a balas
de pistola.
Comprehende-se a angustia profunda que assim impelliu o primeiro
cidadão portuguez a procurar nos interessantes phenomenos da balistica
expostos por um pellotiqueiro impavido, ou nos falsetes garganteados
por um tenor delambido, uma justa e equitativa compensação á perda
dos mais illustres dos seus compatriotas.
Referindo as circumstancias funebres d'estes obitos, a historia dirá:
_A familia dos mortos pediu desculpa de cumprimentos, e el-rei pediu
«bis» ao tenor Gayarre,--uma e outra coisa devida ao estado de
consternação em que todos se achavam_.
E os prosteros, ao lerem esta pagina commovedora, verterão lagrimas
de enternecimento sobre esse testemunho eloquentissimo da delicadeza
profunda de tão excelso quão sensivel principe.

* * * * *
Se não receassemos profanar a dôr tão intima e tão sincera do soberano,
se não temessemos alancear, inopportunos, o seu extremoso coração,
tão manifestamente envolto em luctuosos crepes na occasião presente,
nós ousariamos formular humildemente uma debil pergunta:
Julga sua magestade que, assim como os principes têem coração, o não
têem os povos egualmente?
Quando, em vez das testas communs e opacas, são as fulgidas e
rutilantes testas coroadas, as que Deus, levantando-se respeitoso para
esse effeito do alto do throno celestial, resolve com a devida,
consideração chamar ás alturas, a fim de as fixar com a demais
brilhanteria no interessante museu da Via Lactea,--julga por acaso Sua
Magestade que n'esses pomposos lances, não choram tão
dolorosamente os subditos pelos seus bons reis como os reis choram
pelos seus bons subditos?
Cuida Sua Magestade que não nos faz tão grande mossa o baque de um
grande principe que ha por bem fallecer, como a que em sua magestade
faz a queda de um honrado cidadão que morre?
Oh! mas que Sua Magestade se digne de nos fazer essa justiça:--é
perfeitamente a mesma coisa!
Que Sua Magestade o queira ponderar perante o afflictivo transe por
que acaba de passar o seu coração generoso e paternal!
Quando o sino grande da Sé badala o dobre supremo dos obitos reaes,
quando as molas dos regios coches inclinam a orelha tetrica sob as
gualdrapas funerarias dos solemnes sahimentos, quando os escudos das
quinas se quebram no marmore dos monumentos ao som cavo de uma
voz que proclama--Real, real, real, por el-rei de Portugal,--a alma do
povo póde bem, como a do principe em lances correlativos, precisar,
para o fim de não succumbir á intensidade da dôr, de appelar então por
seu turno para os santos balsamos que escorrem das cavalletas das
operas e das proezas do tiro ao alvo.

* * * * *
Ousamos por tanto esperar, submissos e confiados, que--tendo em vista,
os dolorosos e excruciantes paroxismos que póde attingir a saudade,
tanto no coração do povo, como no coração dos principes,--sua
magestade se digne de mandar sem demora revogar a lei dura e
deshumana que por occorrencia dos obitos de pessoas reaes manda
vedar ao corrente pranto das gentes o lacrimatorio dos divertimentos
publicos.
* * * * *
A policia, tomada de um d'esses accessos de zelo intermittente que ás
vezes acomette esta veneranda instituição, acaba, de assaltar varias
casas de batota em Lisboa, no Porto, na Povoa de Varzim e em Vizeu.
Todas essas diligencias se fizeram com grande exito.
A policia foi pé ante pé, como o côro dos carabineiros nos Bandidos de
Offenbach, e deu em cheio nas maroscas, capturando os jogadores e
apprehendendo os baralhos, as roletas, a mobilia da casa, o dinheiro da
banca e o dos parceiros.
O Diario do Governo d'ontem traz a este respeito uma portaria de
louvor, na qual o ministro do reino, em nome de sua magestade el-rei,
elogia a policia pelo bem que andou, não só capturando os jogadores,
mas--como muito bem acrescenta a portaria--apprehendendo outro sim
algum dinheiro e mobilia.
Como bons subditos fieis e
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