As Farpas (Junho 1883) | Page 2

Eça de Queiroz Ramalho Ortigão
obra sublime. Por��m de balde. Porque nada ha mais inimitavel, pela affabilidade do trato sobretudo, do que o critico no estado benigno de morto. Seremos pois os classicos da lingua, n��s outros, para esse tempo. Seremos os Vieiras e os Bernardes do cyclo do rei Luiz, o venturosissimo. As academias archivar?o, como preciosas reliquias, a lanterna e o bord?o nodoso com que atravessamos a vida espargindo sobre a terra a luz e as pisaduras. Vossa alteza, octogenario, coroado de c?s, por�� os seus reaes oculos para nos ler aos seus netos, aos quaes vossa alteza dir��, batendo com os n��s dos dedos sobre a nossa obra amarellecida e veneranda:
--O velho rei Carlos foi t?o bom e t?o prasenteiro rei como o principe seu progenitor, mas faltaram-lhe Curcios e Livios d'esta laia para o immortalisarem no eterno jubilo das gentes!
E vossa alteza solu?ar�� de saudosa magoa sobre as cabe?as infantis da sua prole, considerando-se um monarcha desditoso por que na vasta perspectiva do seu reinado lhe faltou a projec??o grandeosa d'esta obra cathedralesca.
Queira vossa alteza ir sempre seguindo, por partes.
Que �� que as duas camaras do parlamento teem botado durante o decurso dos ultimos quinze annos em beneficio da educa??o de vossa alteza ou da educa??o d'alguem que seja n'este mundo?
Nada, serenissimo senhor! pela palavra nada!
Hade ter constado por certo a vossa alteza o que elles ainda ultimamente fizeram com um projecto de lei sobre a instruc??o secundaria, o qual Thomaz Ribeiro, esse bem-quisto vate, ministro de vossa alteza e porta-ala��de da sua c?rte, arrancou a ferros das entranhas da musa para o mandar para a mesa como uma especie de g��mea administrativa da Delphina do mal.
Como vossa alteza n?o era a esse tempo regente soberano do reino, e se achava ainda ent?o sob o dominio da auctoridade paterna, n?o sabemos se lhe teriam permittido a leitura d'esse debate ...
Foi uma coisa enorme, respeitavel senhor!
Um queria que lhe abolissem o latim, lingoa morta e m�� lingoa, sevandijada de verbos exquisitos, como sum-es-fui e outros que taes; e em substitui??o pedia disciplina psychologica, que era para os rapazes ficarem bem ao facto da alma humana. E voltando-se para a meza, o orador berrava:
--Eu c��, snr presidente, n?o me importa com Tito Livio, nem me importa com ninguem n'este mundo. Alma e mais alma para cima do alumno, que �� do que os rapazes precisam para ir para leis!
Outro queria religi?o, porque sem religi?o o que �� o homem? O homem sem religi?o ��, com licen?a, um bruto. E citava Renan que f?ra visinho d'elle em Paris e que n?o era bruto. Porqu��? Porque tinha temor de Deus,--de noite, ��s escondidas, em casa. O orador soube-o pela porteira do predio.
Houve um deputado que insistiu em que se affastasse o publico dos lyceus, porque muita canalha junta n?o aprende nada. Um menino at�� dois �� o dado para os mestres todos se concentrarem e fazerem uma educa??o capaz.
Houve mais um que pediu institutos de instruc??o secundaria para a mulher, pela ras?o de qu��, segundo elle, se tornava mister que a mulher, que �� j�� a rosa, fosse tambem o perfume. Textual!
E houve ainda um outro que, abundando nas ideias do precedente, exclamou enternecido, com os olhos em alvo: _�� indispensavel, snr. presidente, que os dois sexos, o masculino e o feminino, caminhem na senda do futuro ao lado um do outro, de m?os dadas_. Egualmente textual!
Emfim, ao cabo de vinte dias de discuss?o, a decencia obrigou a agarrar no projecto pelas orelhas e a leval-o de rastos para a camara dos pares; mas como esta camara o n?o quiz por coisa nenhuma do mundo, o ministro das Flores d'alma, e do Reino, levou-o para casa no louvavel intuito de o p?r em verso. E consta agora que o v?o aproveitar sob a forma de magica no theatro de D. Maria.
Logo depois da instruc??o publica n?o viu vossa alteza como elles pegaram n'uma quest?o d'arte?!...
Lembra-se um de fallar no leil?o do diplomata Z��a Bermudez, o qual reunia ��s qualidades do mais excellente homem uma pequena collec??o d'arte com quatro potes etruscos.
Ao ouvir fallar pela primeira vez durante toda a sua longa carreira parlamentar em quatro potes etruscos, a camara e o governo embasbacaram por um momento, mas recahindo immediatamente em si com maravilhosa presen?a de espirito, camara e governo menearam as cabe?as familiarmente, como se cada um dos legisladores n?o tivesse feito desde muito pequeno outra coisa sen?o jogar a pucara com potes d'esses.
Houve um assentimento geral na assembleia, e os gestos e as vozes exprimiram com unanimidade:
--Oh! sim!... os potes etruscos ... conhecemos perfeitissimamente!
--O paiz, snr presidente, n?o pode consentir que preciosidades de t?o inestimavel valor artistico saiam do reino para ir enriquecer os museus extrangeiros!...
--Appoiado! appoiado!--opinou o snr presidente do conselho, convicto e subitamente illuminado pela providencia como um vidente da Etruria em
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