submissa vontade de
uma filha. Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pae; mas
eu não disse ao primo Balthazar que casava; disse-lhe unicamente que
amava.
--Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de dizer!... quem
pensaria que os seus dezeseis annos estavam tão abundantes de
palavras!...
--Não são só palavras, primo--retorquiu Thereza com gravidade--são
sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se lhe
eu mentisse ficaria mais bem vista de meu primo?
--Não, prima Thereza; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo.
Ora, olhe, não duvída declarar quem é o ditoso mortal da sua
preferencia?
--Que lhe faz saber isso?
--Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me
vêr vencido por quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos seus
olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu
primo Balthazar, se o tivesse em conta do seu amigo intimo?
--N'essa conta é que eu o não posso já ter...--respondeu Thereza,
sorrindo e contando, como elle, as syllabas das palavras.
--Pois nem para amigo me quer?!
--O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em
diante meu inimigo.
--Pelo contrario...--tornou elle com mal rebuçada ironia--muito pelo
contrario... Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir
casada com algum miseravel indigno de si.
--Casada!...--interrompeu ella; mas Balthazar cortou-lhe logo a réplica
d'este modo:
--Casada com algum famoso ébrio ou jogador de páo, valentão de
aguadeiros, e distincto cavalheiro que passa os annos lectivos
encarcerado nas cadêas de Coimbra...
Visivel é que Balthazar Coutinho estava senhor do segredo de Thereza.
Seu tio, naturalmente, lhe communicara a criancice da prima, talvez
antes de destinar-lh'a esposa.
Ouvira Thereza o tom sarcastico d'aquellas palavras, e erguêra-se
respondendo assim com altivez:
--Não tem mais que me diga, primo Balthazar?
--Tenho, prima: queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide agora
que está fallando com o namorado infeliz: convença-se de que falla
com o seu mais proximo parente e mais sincero amigo, e mais decidido
guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a
expressa vontade de seu pae, uma ou outra vez conversára da janella
com o filho do corregedor. Não dei valor ao successo, e tomei-o como
criancice. Como eu frequentasse o meu ultimo anno em Coimbra, ha
dois annos conheci de sobra Simão Botelho. Quando vim e me
contaram a sua affeição ao academico, pasmei da boa fé da priminha;
depois entendi que a sua mesma innocencia devia ser o seu anjo
custodio. Agora, como seu amigo, cumpunjo-me de a vêr ainda
fascinada pela perversidade do seu visinho. Não se recorda de ter visto
Simão Botelho sociando com a infima vilanagem d'esta terra? Não viu
os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor de feiras?
Não lhe constou que elle, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava
pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando á
canalha a guerra aos nobres, e aos reis, e á religião de nossos paes? A
prima ignoraria isto por ventura?
--Ignorava parte d'isso, e não me afflige o sabêl-o. Desde que conheci
Simão, não me consta que elle tenha dado o menor desgosto á sua
familia, nem ouço fallar mal d'elle.
--E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma
de costumes?
--Não sei, nem penso n'isso--replicou com enfado Thereza.
--Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas ultimas palavras: eu
hei de, em quanto viver, trabalhar para salval-a das garras de Simão
Botelho. Se seu pae lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos
ataques do seu demonio, eu farei vêr ao valentão que a victoria sobre os
aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fóra
da casa de meu tio Thadeu d'Albuquerque.
--Então o primo quer-me governar?--atalhou ella com desabrida
irritação.
--Quero-a dirigir em quanto a sua razão precisar de auxilio. Tenha juizo,
e eu serei indifferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima
Thereza.
Balthazar Coutinho foi d'ali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial
do dialogo. Thadeu, atonito da coragem da filha, e ferido no coração e
direitos paternaes, correu ao quarto d'ella, disposto a espancal-a.
Reteve-o Balthazar, reflexionando-lhe que a violencia prejudicaria
muito a crise, sendo coisa de esperar que Thereza fugisse de casa.
Refreou o pae a sua ira, e meditou. Horas depois chamou sua filha,
mandou-a sentar ao pé de si, e em termos serenos e gesto bem
composto, lhe disse que era sua vontade casal-a com o primo; porém
que elle já sabia que a vontade de sua filha não era essa. Ajuntou que a
não violentaria; mas tambem não consentiria que ella, sovando aos pés
o pundonor de seu pae,
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