Amor de Perdição | Page 7

Camillo Castello Branco
sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para
Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que
nome has de responder á tua pobre Thereza.»
A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas
aulas, em parte nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe
apenas as dos condiscipulos sensatos que o aconselhavam para bem, e o
visitaram no carcere de seis mezes, dando-lhe alentos e recursos, que
seu pae lhe não dava, e sua mãe escassamente suppria. Estudava com

fervor, como quem já d'alli formava as bases do futuro renome e da
posição por elle merecida, bastante a sustentar dignamente a esposa. A
ninguem confiava o seu segredo, senão ás cartas que enviava a Thereza,
longas cartas em que folgava o espirito da canceira da sciencia. A
apaixonada menina escrevia-lhe a miudo, e já dizia que a ameaça do
convento fôra mero terror de que já não tinha mêdo, porque seu pae não
podia viver sem ella.
Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado em
pontos difficeis das materias do primeiro anno, tal conta deu de si, que
os lentes e os condiscipulos o houveram como primeiro premiado.
A este tempo, Manoel Botelho, cadete em Bragança, destacado no
Porto, licenciou-se para estudar na universidade as mathematicas.
Animou-o a noticia do reviramento que se déra em seu irmão. Foi viver
com elle; achou-o quieto; mas alheado n'uma ideia que o tornava
misanthropo e intratavel n'outro genero. Pouco tempo conviveram,
sendo a causa da separação um desgraçado amor de Manoel Botelho a
uma açoriana casada com um academico. A esposa apaixonada
perdeu-se nas illusões do cego amante. Deixou o marido, e fugiu com
elle para Lisboa, e d'ahi para Hespanha. Em outro relanço d'esta
narrativa darei conta do remate d'este episodio.
No mez de Fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta de
Thereza. No seguinte capitulo se diz minuciosamente a peripecia que
forçára a filha de Thadeu de Albuquerque a escrever aquella carta de
pungentissima surpreza para o academico, convertido aos deveres, á
honra, á sociedade e a Deus pelo amor.

III.
O pae de Thereza não embicaria na impureza do sangue do corregedor,
se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o
odio de um e o desprêso do outro. O magistrado mofava do rancor do
seu visinho, e o visinho malsinava de venalidade a reputação do
magistrado. Este sabia da injuriosa vingança em que o outro se ia

despicando; fingia-se invulneravel á detracção; mas de dia para dia se
lhe azedava a bilis; e é de crêr que, se o não contivessem considerações
de familia, soffreria menos, desabafando pela bôca d'um bacamarte,
arma da predilecção dos Botelhos Correias de Mesquita. Era obra
sobrehumana o reconciliarem-se. Rita, a filha mais nova, estava um dia
na janella do quarto de Simão, e viu a visinha rente com os vidros e a
testa apoiada nas mãos. Sabia Thereza que era aquella menina a mais
querida irmã de Simão, e a que mais semelhança de parecer tinha com
elle. Sahiu da sua artificial indifferença, e respondeu ao reparo de Rita,
fazendo-lhe com a mão um gesto e sorrindo para ella. A filha do
corregedor sorriu tambem, mas fugiu logo da janella, porque sua mãe
tinha prohibido ás filhas de trocarem vistas com pessoa d'aquella casa.
No dia seguinte á mesma hora, levada da sympathia que lhe causára
aquelle sorriso e aceno, tornou Rita á janella, e lá viu Thereza com os
olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com
resguardo, afastando-se, a um tempo, do peitoril das janellas; e assim,
ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam contemplando. Como
a rua era estreita, podiam ouvir-se fallando baixo. Thereza, mais pelo
movimento dos labios que por palavras, perguntou a Rita se era sua
amiga. A menina respondeu com um gesto affirmativo, e fugiu,
acenando-lhe um adeus. Estes rapidos instantes de se vêrem
repetiram-se successivos dias, até que, perdido o maior mêdo de ambas,
ousaram demorar-se em palestras a meia voz. Thereza fallava de Simão,
contava á menina de onze annos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que
ella havia de ser ainda sua irmã, recommendando-lhe muito que não
dissesse nada á sua familia.
N'uma d'essas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a
voz que foi ouvida d'uma irmã, que a foi logo accusar ao pae. O
corregedor chamou Rita, e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira
á visinha. Tanta foi sua cólera, que, sem attender ás razões da esposa,
que viera espavorida dos gritos d'elle, correu ao quarto de Simão, e viu
ainda Thereza á janella.
Ólé!--disse elle á pállida menina--Não tenha a confiança de pôr olhos
em pessoa de minha casa. Se quer casar, case com um sapateiro, que é

um
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