Amor de Perdição | Page 9

Camillo Castello Branco
eu n?o tenho aos seus olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu primo Balthazar, se o tivesse em conta do seu amigo intimo?
--N'essa conta é que eu o n?o posso já ter...--respondeu Thereza, sorrindo e contando, como elle, as syllabas das palavras.
--Pois nem para amigo me quer?!
--O primo n?o me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em diante meu inimigo.
--Pelo contrario...--tornou elle com mal rebu?ada ironia--muito pelo contrario... Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir casada com algum miseravel indigno de si.
--Casada!...--interrompeu ella; mas Balthazar cortou-lhe logo a réplica d'este modo:
--Casada com algum famoso ébrio ou jogador de páo, valent?o de aguadeiros, e distincto cavalheiro que passa os annos lectivos encarcerado nas cadêas de Coimbra...
Visivel é que Balthazar Coutinho estava senhor do segredo de Thereza. Seu tio, naturalmente, lhe communicara a criancice da prima, talvez antes de destinar-lh'a esposa.
Ouvira Thereza o tom sarcastico d'aquellas palavras, e erguêra-se respondendo assim com altivez:
--N?o tem mais que me diga, primo Balthazar?
--Tenho, prima: queira sentar-se algum tempo mais. N?o cuide agora que está fallando com o namorado infeliz: conven?a-se de que falla com o seu mais proximo parente e mais sincero amigo, e mais decidido guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade de seu pae, uma ou outra vez conversára da janella com o filho do corregedor. N?o dei valor ao successo, e tomei-o como criancice. Como eu frequentasse o meu ultimo anno em Coimbra, ha dois annos conheci de sobra Sim?o Botelho. Quando vim e me contaram a sua affei??o ao academico, pasmei da boa fé da priminha; depois entendi que a sua mesma innocencia devia ser o seu anjo custodio. Agora, como seu amigo, cumpunjo-me de a vêr ainda fascinada pela perversidade do seu visinho. N?o se recorda de ter visto Sim?o Botelho sociando com a infima vilanagem d'esta terra? N?o viu os seus criados com as cabe?as quebradas pelo tal varredor de feiras? N?o lhe constou que elle, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando á canalha a guerra aos nobres, e aos reis, e á religi?o de nossos paes? A prima ignoraria isto por ventura?
--Ignorava parte d'isso, e n?o me afflige o sabêl-o. Desde que conheci Sim?o, n?o me consta que elle tenha dado o menor desgosto á sua familia, nem ou?o fallar mal d'elle.
--E está por isso persuadida de que Sim?o deve ao seu amor a reforma de costumes?
--N?o sei, nem penso n'isso--replicou com enfado Thereza.
--N?o se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas ultimas palavras: eu hei de, em quanto viver, trabalhar para salval-a das garras de Sim?o Botelho. Se seu pae lhe faltar, fico eu. Se as leis a n?o defenderem dos ataques do seu demonio, eu farei vêr ao valent?o que a victoria sobre os aguadeiros n?o o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fóra da casa de meu tio Thadeu d'Albuquerque.
--Ent?o o primo quer-me governar?--atalhou ella com desabrida irrita??o.
--Quero-a dirigir em quanto a sua raz?o precisar de auxilio. Tenha juizo, e eu serei indifferente ao seu destino. N?o a enfado mais, prima Thereza.
Balthazar Coutinho foi d'ali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do dialogo. Thadeu, atonito da coragem da filha, e ferido no cora??o e direitos paternaes, correu ao quarto d'ella, disposto a espancal-a. Reteve-o Balthazar, reflexionando-lhe que a violencia prejudicaria muito a crise, sendo coisa de esperar que Thereza fugisse de casa. Refreou o pae a sua ira, e meditou. Horas depois chamou sua filha, mandou-a sentar ao pé de si, e em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse que era sua vontade casal-a com o primo; porém que elle já sabia que a vontade de sua filha n?o era essa. Ajuntou que a n?o violentaria; mas tambem n?o consentiria que ella, sovando aos pés o pundonor de seu pae, se désse de cora??o ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvalar na sepultura, e mais depressa desceria a ella, perdendo o amor da filha, que elle já considerava morta. Terminou perguntando a Thereza, se ella duvidava entrar n'um convento, e ahi esperar que seu pae morresse, para depois ser desgra?ada á sua vontade.
Thereza respondeu, chorando, que entraria n'um convento, se essa era a vontade de seu pae; porém que se n?o privasse elle de a ter em sua companhia, nem a privasse a ella dos seus affectos, por mèdo de que sua filha praticasse alguma ac??o indigna, ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer. Prometteu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para seu pae.
Thadeu ouviu-a, e n?o lhe replicou.

IV.
O cora??o de Thereza estava mentindo. V?o lá pedir sinceridade ao cora??o!
Para finos entendedores, o dialogo do anterior capitulo definiu a
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