Amor de Perdição | Page 8

Camillo Castello Branco
casar em breve a filha com seu primo Balthazar Coutinho, de Castro-d'Aire, senhor de casa, e egualmenle nobre da mesma prosapia. Cuidava o velho, presump?oso conhecedor do cora??o das mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a filha ao esquecimento d'aquelle pueril amor a Sim?o. Era maxima sua que o amor, aos quinze annos, carece de consistencia para sobreviver a uma ausencia de seis mezes. N?o pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As excep??es tem sido o ludibrio dos mais assizados pensadores, tanto no especulativo como na sciencia positiva. N?o era muito que Thadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e cora??o de mulher, cujas variantes s?o tantas e t?o caprichosas, que eu n?o sei se alguma maxima póde ser-nos guia, a n?o ser esta: ?Em cada mulher, quatro mulheres incomprehensiveis, pensando alternadamente como se h?o de desmentir umas ás outras.? Isto é o mais seguro; mas n?o é infallivel. Ahi está Thereza que parece ser unica em si. Dir-se-ha que as tres da conta, que diz a senten?a, n?o podem coexistir com a quarta, aos quinze annos? Tambem o penso assim, posto que a fixidez, a constancia d'aquelle amor, funda em causa independente do cora??o: é porque Thereza n?o vai á sociedade, n?o tem um altar em cada noite na sala, n?o provou o incenso d'outros galans, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida pela ausencia, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a convencem de que ha um cora??o para cada homem, e uma só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Thereza teria em si as quatro mulheres da maxima, se o vapor de quatro incensorios lhe estonteasse o espirito? N?o é facil, nem preciso decidir; e vamos ao conto.
ácerca de Sim?o Botelho, nunca diante de sua filha Thadeu de Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que elle fez logo foi chamar a Vizeu o sobrinho de Castro d'Aire, e prevenil-o do seu designio, para que elle em face de Thereza procedesse como convinha a um enamorado de fei??o, que mutuamente se apaixonassem e promettessem auspicioso futuro ao casamento.
Por parte de Balthazar Coutinho a paix?o inflammou-se t?o depressa, quanto o cora??o de Thereza se congelou de terror e repugnancia. O morgado de Castro-d'Aire, attribuindo a frieza de sua prima a modestia, a innocencia e acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre d'aquella alma, e saboreou de antem?o o prazer de uma lenta, mas segura conquista. Verdade é que Balthazar nunca se explicara de modo que Thereza lhe désse resposta decisiva; um dia, porém, instigado por seu tio, affoitou-se o ditoso noivo a fallar assim á melancólica menina:
--é tempo de lhe abrir o meu cora??o, prima. Está bem disposta a ouvir-me?
---Eu estou sempre bem disposta a ouvil-o, primo Balthazar.
A desplicencia enfadosa d'esta resposta abalou algum tanto as convic??es do fidalgo, respeito á innocencia, modestia e acanhamento de sua prima. Ainda assim quiz elle no momento persuadir-se que a boa vontade n?o poderia exprimir-se d'outro modo, e continuou:
--Os nossos cora??es penso eu que est?o unidos; agora é preciso que as nossas casas se unam.
Thereza impallideceu, e baixou os olhos.
--Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradavel?!--proseguiu Balthazar, rebatido pela desfigura??o de Thereza.
--Disse-me o que é impossível fazer-se--respondeu ella sem turva??o--O primo engana-se: os nossos cora??es n?o est?o unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensava em tal.
--Quer dizer que me aborrece, prima Thereza?--atalhou corrido o morgado.
--N?o, senhor: já lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo n?o devo ser esposa d'um amigo a quem n?o posso amar. A infelicidade n?o seria só minha...
--Muito bem... Posso eu saber--tornou com refalsado sorriso o primo--quem é que me disputa o cora??o de minha prima?
--Que lucra em o saber?
--Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem... é exacto?
--é.
--E com tamanha paix?o que desobedece a seu pae?
--N?o desobede?o: o cora??o é mais forte que a submissa vontade de uma filha. Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pae; mas eu n?o disse ao primo Balthazar que casava; disse-lhe unicamente que amava.
--Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de dizer!... quem pensaria que os seus dezeseis annos estavam t?o abundantes de palavras!...
--N?o s?o só palavras, primo--retorquiu Thereza com gravidade--s?o sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se lhe eu mentisse ficaria mais bem vista de meu primo?
--N?o, prima Thereza; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo. Ora, olhe, n?o duvída declarar quem é o ditoso mortal da sua preferencia?
--Que lhe faz saber isso?
--Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me vêr vencido por quem tivesse merecimentos que
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