A Queda dum Anjo | Page 9

Camilo Castelo Branco
espectaculos theatraes,
pagavam-os, e regalavam a gente pobre em vez de a obrigarem a entrar
no erario com o estipendio dos actores. (_Sussurro e alguns «apoiados»
provocados pelo sussurro_.)
Sr. presidente--continuou o orador, tomando rapé com a soffreguidão
de quem teme que o raio inspirativo se arrefente--sr. presidente! Eu
tenho o desgosto de ter nascido n'um paiz, em que o mestre-escola
ganha cento e noventa réis por dia, e as cantarinas, segundo me dizem,
ganham trinta e quarenta moedas por noite. Eu sou de um paiz, sr.
presidente, em que se pede ao povo o subsidio litterario para pagar com
elle as tramoias da Lucrecia Borgia. Eu sou de um paiz, pobrissimo, em
que a veia da nação exangue soffre cada anno a sangria de algumas
duzias de contos para sustentar comediantes, farcistas, funambulos e
dansarinas impudicas! Sr. presidente, v. ex.^a sorriu-se, vejo que a
camara está sorrindo, e eu ouso dizer a v. ex.^a e aos meus collegas,
como o poeta mantuano: _sunt lacrimae rerum_. Aqui é o ponto de se
carpirem por seus filhos aquelles, que se cuidam muito avantajados em
civilisação a seus avós. Aqui é o ponto de nos alembrarmos dos
israelitas livres, que sorriam em Jerusalem, e choravam depois escravos
ás margens do rio estranho. Depois será o declamarmos com o epico:
Em Babylonia, sobre os rios, quando De ti, Sião sagrada, nos
lembramos, Alli com gran saudade nos sentamos O bem perdido,

miseros, chorando.
Os instrumentos musicos deixando
Peço á camara que repare nos tres versos, que completam a quadra e a
prophecia:
Os instrumentos musicos deixando Nos estranhos salgueiros
penduramos,
Hic, sr. presidente:
Quando aos cantares que já em ti cantamos Nos estavam imigos
incitando.
Nos cantares, sr. presidente, é que bate o ponto do meu discurso:
(Hilaridade: susurro nas galerias: o presidente tange a campainha).
O orador:--Sr. presidente! que me não queiram persuadir de que estou
em casa de orates! Que é isto? Que bailar d'ebrios é este em volta de
Portugal moribundo? Como podem rir-se os enviados do povo, quando
um enviado do povo exclama: Não tireis á nação o que ella vos não
póde dar, governos! Não espremais o ubre da vacca faminta, que
ordenhareis sangue! Não queiraes converter os clamores do povo em
cantorias de theatro! Não vades pedir ao lavrador quebrado de trabalho
os ratinhados cobres das suas economias, para regalos da capital, em
quanto elle se priva do aprezigo de uma sardinha, por que não tem uma
pogeia com que compral-a.
E vinte contos e trinta contos de subsidios que moralidade fomentam,
que lampadas accendem nos altares da civilisação? Eu peço á camara
que leia attentamente o discurso theologico do padre Ignacio de
Camargo, lente no real collegio de Salamanca, ácerca dos theatros. Não
menos fervorosamente peço a v. ex.^a e ás camaras que leiam as
mirificas paginas do nosso oratoriano Manuel Bernardes, sobre
representações theatraes. O que são comedias? Responda por mim o
eminente moralista, e mais que todos vernaculissimo escriptor: «Os
assumptos das comedias pela maior parte são impuros cheios de

lascivos amores, de galanteios profanos, de papeis amorosos, de rondas,
passeios, musicas, dadivas, visitas, solicitações torpes, finezas loucas,
empenhos desatinados, chimeras, emprezas impossiveis, que as solicita
ordinariamente um criado, uma mulher terceira, uma chave, um jardim,
uma porta falsa, um descuido do pae, ou do irmão, ou do marido da
dama, e tudo isto costuma parar em uma communicação deshonesta,
em um incesto, ou em um adulterio, em que ha muitos lances torpes,
louvores lisongeiros da formosura, expressões affectadas de amor,
promessas de constancia, competencias de affectos, temores, ciumes,
suspeitas, sustos, desesperações, e em summa, uma gentilica idolatria,
ajustada pontualmente ás infames leis de Venus e Cupido, e aos torpes
documentos de Ovidio no livro de Arte amandi.»
Vozes da galeria: Muito bem! Bravo! (Espirram as risadas de varios
sujeitos. Gargalhada compacta).
O orador: Sr. presidente! Eu irei contar aos povos, que me aqui
mandaram, as gargalhadas com que fui recebido no seio da
representação nacional, por que ousei dizer que um paiz carregado de
dividas não instaura divertimentos attentatorios dos bons costumes com
o dinheiro da nação. Irei dizer aos meus constituintes que se desfaçam
das arrecadas e cordões de suas mulheres e filhas, para enfeitarem as
gargantas despeitoradas das Lucrecias Borgias que custam quarenta
libras por noite!
Sr. presidente, nossos avós, os coevos d'el-rei D. Manuel e D. João III,
tiveram theatros. Era no tempo em que as frotas da India rompiam Téjo
acima carregadas de oiro. O Plauto portuguez deliciava os paços dos
reis, e os pateos e tablados do povo. Quando se abriu o erario para
locupletar o alto engenho de Gil Vicente? Quando foi necessario ir
mundo fóra em cata de gritadores que vendem tão caro o ar dos
pulmões vibrado no mechanismo da garganta?
Uma voz: Fez-se a civilisação depois.
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