A Queda dum Anjo | Page 3

Camilo Castelo Branco
a sciencia, e para elle nove vintens e meio por dia. E comia
o sabio estes nove vintens e meio quotidianos, e ensinava os rapazes, e
sobejava-lhe tempo para ler historia! Podéra!... Os governos davam-lhe
férias grandes ao estomago, em proveito do espirito. Se elle andasse
bem nutrido e succado de tripa, não aprendia nem ensinava coisa de
monta. Que a pobresa é o estimulo das maiores façanhas da
intelligencia. Paupertas impulit audax[3]. Isto que o Horacio faminto
dizia de si, accomodam-no os regedores da coisa publica aos
professores de primeiras lettras; porém, outros muitos versos do
Horacio farto, esses tomam-os elles para seu uso.
Estava, pois, o mestre-escola, de parceria com o boticario, a castigar a
perversidade dos imperadores romanos, por amor do martyr S.
Sebastião, que, segunda vez, acabava de ser fréchado no panegyrico.
N'este comenos, abeirou-se d'elles Calisto Eloy, e para logo se callaram
as duas capacidades, em referencia ao Salomão da terra.

--Que dizem vocemecês?--perguntou Calisto benignamente.
Continuem... Parece que fallavam do santo.
--É verdade, sr. morgado--accudiu o boticario, ajustando os collarinhos
percucientes ao lóbulo das orelhas, escarlates do atrito da
gomma.--Fallavamos na malvadez dos imperadores pagãos.
--Sim!--disse Calisto, com proeminencia declamatoria,--sim!
Horrorosos tempos aquelles foram! Mas os tempos actuaes não se
differençam tanto dos antigos, que possamos, em consciencia e sciencia,
encarecer o presente e praguejar o passado. Diocleciano era pagão,
cego á luz da graça: os crimes d'elle hão de ser contrapesados, e
descontados, na balança divina, com a ignorancia do delinquente. Ai,
porém, dos que prevaricaram fechando olhos á luz da notoria verdade,
afim de se fingirem cegos! Ai dos impios, cujas entranhas estão
afistuladas de herpes! No grande dia, funestissima ha de ser a sentença
d'elles, novos Caligulas, novos Tiberios, e Dioclecianos novos!
Relanceou o pharmaceutico uma olhadella esguelhada ao professor, o
qual, abanando tres vezes e de compasso a cabeça, dava assim a
perceber que abundava na admiração do seu amigo e consocio erudito
em historia romana.
Obrigado ás orelhas do auditorio attento, Calisto, em toada de Ezequiel,
continuou:
--Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma
imperial! Os costumes de nossos maiores são mettidos a riso! As leis
antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sycophantas
modernos, que já não servem á humanidade, a qual, em consequencia
de ter mais sete seculos, se emancipou da tutela das leis. (Allusão
bervada aos vereadores de Miranda, que discreparam do intento
restaurador do foral dado por D. Affonso. Vinham a ser sycophantas os
collegas municipalenses.) Credite, posteri!--exclamou Calisto Eloy
com enfase, nobilitando a postura.
O latim não lh'o entenderam, salvo o mestre-escola, que antes de ser
sargento de milicias, havia sido donato no convento dominicano de

Villa-Real.
E repetiu: Credite, posteri!
N'esta occasião, saiu da egreja a sr.^a D. Theodora Figueirôa, e disse ao
esposo:
--Vem d'ahi, Calisto. Vamos jantar, que é uma hora, e já lá vae o padre
prégador para casa.
Enguliu o morgado tres phrases de polpa, que lhe inflavam os bocios, e
foi ao jantar, sacrificando-se á regularidade das suas horas inalteraveis
de repasto.
Ficaram o boticario e o professor de primeiras lettras, e mais os
lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas
illustrativas, ao alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto
nos entremezes do entrudo exclamou:
--Aquillo é que dava um deputado ás direitas! Um homem assim, se
fosse a Lisboa fallar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
--Isso não, perdoará vocemecê, tio José do Cruzeiro,--observou o
mestre-escola--os impostos é necessario pagal-os. Sem impostos, não
haveria rei nem professores de instrucção primaria (observem a
modestia da gradação!) nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido, repetidas vezes no Periodico dos Pobres, as
palavras autonomia nacional. Falhou-lhe d'esta feita a memoria, lapso
que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticario,
que resmungou:
--Anatomia nacional!
--Que é?!--perguntou ao pharmaceutico um estudante de clerigo.
--Parece-me que é asneira!--respondeu o outro com certa indecisão.

Proseguiu, concluindo, o mestre-escola:
--E, portanto os tributos, tio José do Cruzeiro, são necessarios ao estado
como a agua aos milhos. Ora, agora, que ha muito quem bebe o suor do
povo, isso ha; e aquelles, que deviam ser bem pagos, são os que menos
comem da fazenda nacional. Aqui estou eu, que sou um funccionario
indispensavel á patria, e receberia cento e noventa réis por dia, se não
trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que
venho a receber seis e cinco! Que paiz!... O senhor morgado disse bem:
estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Caligulas!
O auditorio já vacillava em decidir qual dos dois era mais talhado para
ir fallar ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre escola.

III
*O demonio parlamentar descobre o anjo*
Fermentou na mente dos principaes
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