duvida nenhuma. Ia elle desenterrar geração já sepultada ha setecentos
annos, e provar que, na era de 1201, D. Fuas Mendo casára com a filha
de um mesteiral, e D. Dorzia se havia sujado casando mofinamente
com um pagem da lança de seu irmão D. Payo Ramires.
Farpeados pela viperina lingua d'elle, os fidalgos provincianos
retaliavam quanto podiam a prosapia dos Benevides, propalando que
n'aquella familia se gerára um clerigo grande femieiro, beberrão e
lambaz, a quem o santo arcebispo D. Frei Bartholomeu dos Martyres,
uma vez, perguntára que nome havia; e, como quer que o padre
respondesse Onofre de Benevides, o arcebispo accudira dizendo:
Melhor vos acertará com o nome, segundo a vida que fazeis, quem vos
chamará de Bene bibis e male vivis.»[1] O remoque, talvez por ser de
santo, era medianamente engraçado e pouco para affligir; assim mesmo
Calisto Eloy, á conta d'esta injuria dos fidalgos comarcãos, tanto lhes
esgravatou nas gerações, que descobriu radicalmente serem quasi todas
de má casta.
É superfluo dizer-se a qual doutrinação politica pendia o animo do
morgado da Agra de Freimas. Estava com a decisão das côrtes de
Lamego. Fizera-se n'ellas, e cuidava ter assistido, em 1145, áquelle
congresso mythologico, e ter conclamado com Gonçalo Mendes da
Maya, o Lidador, e com Lourenço Viegas, o Espadeiro: _Nos liberi
summus, rex noster liber est_.[2] Todavia, se assim fossem todos os
doutrinarios politicos, a gente apodrecia na mais refestelada paz, e
supina ignorancia do andamento da humanidade.
Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda queria que se venerasse o
passado, a moral antiga como o monumento antigo, as leis de João das
Regras e Martim d'Ocem, como o mosteiro da Batalha, as ordenações
manuelinas como o convento dos Jeronymos.
O mal que d'aqui surdia ao genero humano, a fallar verdade, era
nenhum. Este bom fidalgo, se lhe tirassem o sestro de esmiuçar
desdouros nas gerações das familias patriciatas, era inoffensiva creatura.
D'este senão, a causa foi um chamado Livro-negro, que herdára de seu
tio avô Marcos de Barbuda Tenazes de Lacerda Falcão, genealogico
pavoroso, o qual gastára sessenta dos oitenta annos vividos, a colligir
borrões, travessias, mancebias, adulterios, coitos damnados, e incestos
de muitas familias n'aquellas satanicas costaneiras, denominadas
_Livro-negro das linhagens de Portugal_.
Em summa, Calisto era legitimista quieto, calado, e incapaz de impecer
a roda do progresso, com tanto que elle não lhe entrasse em casa, nem o
quizesse levar comsigo.
Prova cabal de sua tolerancia foi elle acceitar em 1840 a presidencia
municipal de Miranda. Na primeira sessão camararia fallou de feitio e
geito, que os ouvintes cuidavam estar escutando um alcaide do seculo
xv levantado do seu jazigo da cathedral. Queria elle que se
restaurassem as leis do foral dado a Miranda pelo monarcha fundador.
Este requerimento gelou de espanto os vereadores; d'estes, os que
poderam degelar-se, riram na cara do seu presidente, e emendaram a
galhofa dizendo que a humanidade havia já caminhado sete seculos
depois que Miranda tivera foral.
--Pois se caminhou, replicou o presidente, não caminhou direita. Os
homens são sempre os mesmos e quejandos; as leis devem ser sempre
as mesmas.
--Mas... retorquiu a opposição illustrada, o regimen municipal expirou
em 1211, sr. presidente! V. ex.^a não ignora que ha hoje um codigo de
leis communs de todo o territorio portuguez, e que desde Affonso II se
estatuiram leis geraes. V. ex.^a de certo leu isto...
--Li, atalhou Calisto de Barbuda, mas reprovo!
--Pois seria util e racional que v. ex.^a approvasse.
--Util a quem? perguntou o presidente.
--Ao municipio, responderam.
--Approvem os srs. vereadores, e façam obra por essas leis, que eu
despeço-me d'isto. Tenho o governo de minha casa, onde sou rei e
govérno, segundo os foraes da antiga honra portugueza.
Disse; saiu; e nunca mais voltou á camara.
II
*Dois candidatos*
Desde o qual incidente, o morgado, convicto da podridão dos
vereadores em particular, e da humanidade em geral, prometteu a onze
retratos, que tinha de onze avós, pintados indignamente, nunca mais
tocar o cancro social com suas mãos impollutas.
N'este proposito, nem ao menos consentiu que o vigario lhe mandasse o
Periodico dos Pobres do Porto de que era assignante emparceirado com
mais quatro reitores limitrophes, e o mestre escola e o boticario.
Um dia, porém, quando elle saia da festividade de S. Sebastião, cujo
mordomo era, deteve-se no adro, onde o rodearam os mais graudos
lavradores da sua freguezia e das visinhas. N'outro grupo, fallava-se do
sermão, e da constancia do santo capitão das guardas do barbaro
Diocleciano, e da desmoralisação do imperio.
Estas puchadas reflexões era o boticario que as expendia, coadjuvado
pelo mestre de primeiras lettras, sujeito que sabia mais historia romana
do que é permittido a um professor da preciosa e capitalissima sciencia
de ler, contar e escrever, pelo que o sabio vinha a grangear para a
humanidade
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