A Queda dum Anjo | Page 2

Camilo Castelo Branco
D. Payo Ramires.
Farpeados pela viperina lingua d'elle, os fidalgos provincianos retaliavam quanto podiam a prosapia dos Benevides, propalando que n'aquella familia se gerára um clerigo grande femieiro, beberr?o e lambaz, a quem o santo arcebispo D. Frei Bartholomeu dos Martyres, uma vez, perguntára que nome havia; e, como quer que o padre respondesse Onofre de Benevides, o arcebispo accudira dizendo: Melhor vos acertará com o nome, segundo a vida que fazeis, quem vos chamará de Bene bibis e male vivis.?[1] O remoque, talvez por ser de santo, era medianamente engra?ado e pouco para affligir; assim mesmo Calisto Eloy, á conta d'esta injuria dos fidalgos comarc?os, tanto lhes esgravatou nas gera??es, que descobriu radicalmente serem quasi todas de má casta.
é superfluo dizer-se a qual doutrina??o politica pendia o animo do morgado da Agra de Freimas. Estava com a decis?o das c?rtes de Lamego. Fizera-se n'ellas, e cuidava ter assistido, em 1145, áquelle congresso mythologico, e ter conclamado com Gon?alo Mendes da Maya, o Lidador, e com Louren?o Viegas, o Espadeiro: _Nos liberi summus, rex noster liber est_.[2] Todavia, se assim fossem todos os doutrinarios politicos, a gente apodrecia na mais refestelada paz, e supina ignorancia do andamento da humanidade.
Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda queria que se venerasse o passado, a moral antiga como o monumento antigo, as leis de Jo?o das Regras e Martim d'Ocem, como o mosteiro da Batalha, as ordena??es manuelinas como o convento dos Jeronymos.
O mal que d'aqui surdia ao genero humano, a fallar verdade, era nenhum. Este bom fidalgo, se lhe tirassem o sestro de esmiu?ar desdouros nas gera??es das familias patriciatas, era inoffensiva creatura. D'este sen?o, a causa foi um chamado Livro-negro, que herdára de seu tio av? Marcos de Barbuda Tenazes de Lacerda Falc?o, genealogico pavoroso, o qual gastára sessenta dos oitenta annos vividos, a colligir borr?es, travessias, mancebias, adulterios, coitos damnados, e incestos de muitas familias n'aquellas satanicas costaneiras, denominadas _Livro-negro das linhagens de Portugal_.
Em summa, Calisto era legitimista quieto, calado, e incapaz de impecer a roda do progresso, com tanto que elle n?o lhe entrasse em casa, nem o quizesse levar comsigo.
Prova cabal de sua tolerancia foi elle acceitar em 1840 a presidencia municipal de Miranda. Na primeira sess?o camararia fallou de feitio e geito, que os ouvintes cuidavam estar escutando um alcaide do seculo xv levantado do seu jazigo da cathedral. Queria elle que se restaurassem as leis do foral dado a Miranda pelo monarcha fundador. Este requerimento gelou de espanto os vereadores; d'estes, os que poderam degelar-se, riram na cara do seu presidente, e emendaram a galhofa dizendo que a humanidade havia já caminhado sete seculos depois que Miranda tivera foral.
--Pois se caminhou, replicou o presidente, n?o caminhou direita. Os homens s?o sempre os mesmos e quejandos; as leis devem ser sempre as mesmas.
--Mas... retorquiu a opposi??o illustrada, o regimen municipal expirou em 1211, sr. presidente! V. ex.^a n?o ignora que ha hoje um codigo de leis communs de todo o territorio portuguez, e que desde Affonso II se estatuiram leis geraes. V. ex.^a de certo leu isto...
--Li, atalhou Calisto de Barbuda, mas reprovo!
--Pois seria util e racional que v. ex.^a approvasse.
--Util a quem? perguntou o presidente.
--Ao municipio, responderam.
--Approvem os srs. vereadores, e fa?am obra por essas leis, que eu despe?o-me d'isto. Tenho o governo de minha casa, onde sou rei e govérno, segundo os foraes da antiga honra portugueza.
Disse; saiu; e nunca mais voltou á camara.

II
*Dois candidatos*
Desde o qual incidente, o morgado, convicto da podrid?o dos vereadores em particular, e da humanidade em geral, prometteu a onze retratos, que tinha de onze avós, pintados indignamente, nunca mais tocar o cancro social com suas m?os impollutas.
N'este proposito, nem ao menos consentiu que o vigario lhe mandasse o Periodico dos Pobres do Porto de que era assignante emparceirado com mais quatro reitores limitrophes, e o mestre escola e o boticario.
Um dia, porém, quando elle saia da festividade de S. Sebasti?o, cujo mordomo era, deteve-se no adro, onde o rodearam os mais graudos lavradores da sua freguezia e das visinhas. N'outro grupo, fallava-se do serm?o, e da constancia do santo capit?o das guardas do barbaro Diocleciano, e da desmoralisa??o do imperio.
Estas puchadas reflex?es era o boticario que as expendia, coadjuvado pelo mestre de primeiras lettras, sujeito que sabia mais historia romana do que é permittido a um professor da preciosa e capitalissima sciencia de ler, contar e escrever, pelo que o sabio vinha a grangear para a humanidade a sciencia, e para elle nove vintens e meio por dia. E comia o sabio estes nove vintens e meio quotidianos, e ensinava os rapazes, e sobejava-lhe tempo para ler historia! Podéra!... Os governos davam-lhe férias grandes ao estomago, em proveito do espirito. Se elle andasse bem nutrido e succado de tripa, n?o aprendia nem ensinava coisa de monta. Que a pobresa
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