A Morte de D. Ignez | Page 2

Manuel Maria de Barbosa du Bocage
demandar vingança
No Tribunal de Jóve,
Aquelle a conduzir o infausto annuncio
Ao descuidado Amante.
Nas cem tubas da Fama o graõ desastre
Irá pelo Universo:
Haõ de chorar-te, Ignez, na Hircania os Tigres,

No torrado Certaõ da Libya féra
As Sérpes, os Leões haõ de chorar-te.

Do Mondego, que attonito recua,
Do sentido Mondego as alvas
Filhas
Em tropel doloroso
Das urnas de crystal eis vem surgindo,
Eis,
attentas no horror do caso infando,
Terriveis maldições dos lábios

vibraõ
Aos Monstros infernaes, que vaõ fugindo.
Já crôaõ de
cipreste a Malfadada,
E, arrepejando as nítidas madeixas,
Lhe
urdem saudosas, lúgubres endeixas.
Tu, Eco, as decoraste,
E, cortadas dos ais, assim resoaõ
Nos
côncavos penedos, que magoaõ:
Toldaõ-se os ares,
Murchaõ-se as flores:
Morrei, Amores,
Que
Ignez morreo.
Misero Esposo,
Desata o pranto,
Que o teu encanto
Já naõ he teu.
Sua alma pura
Nos Ceos se encerra:
Triste da Terra
Porque a
perdeo!
Contra a cruenta
Raiva ferina
Face divina
Naõ lhe valeo.
Tem rôto o seio,
Thesouro occulto,
Bárbaro insulto
Se lhe
atreveo.
De dôr, e espanto
No carro de oiro
O Numen loiro
Desfaleceo.
Aves sinistras
Aqui piáraõ,
Lobos uiváraõ,
O chaõ tremeo.
Toldaõ-se os ares,
Murchaõ-se as flores:
Morrei, Amores,
Que
Ignez morreo.
FIM DA CANTATA.
EPISÓDIO DO GRANDE
LUIZ DE CAMÕES.
Á MORTE DE
+D. IGNEZ DE CASTRO.+
+CXVIII.+ [1]

. . . . . . . . . .
O caso triste, e digno de memoria,
Que do sepulchro os
hom[~e]es desenterra,
Aconteceo da misera, e mesquinha,
Que
despois de ser morta foi Rainha.
[1] N. B. Os números das Oitavas saõ relativos ao 3.^o Canto, de que
saõ extrahidas, &c.
+CXIX.+
Tu só, tu puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto
obriga,
Déste causa á molesta morte sua,
Como se fora perfida
inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua,
Nem com lagrimas
tristes se mitiga,
He porque queres aspero, e tyrano,
Tuas aras
banhar em sangue humano.
+CXX.+
Estavas, linda Ignez, posta em socego,
De teus annos colhendo doce
fruto,
Naquelle engano da alma, lédo, e cego,
Que a fortuna naõ
deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus
formosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando, e ás hervinhas,

O nome que no peito escripto tinhas.
+CXXI.+
Do teu Principe alli te respondiam
As lembranças que na alma lhe
moravam;
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus
formosos se apartavam;
De noite em doces sonhos que mentiam,

De dia em pensamentos que voavam;
E quanto em fim cuidava, e
quanto via,
Eram tudo memorias de alegria.
+CXXII.+
De outras bellas Senhoras, e Princezas,
Os desejados thalamos
engeita;
Que tudo em fim, tu puro Amor, desprezas,
Quando hum
gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas
O velho

pai sisudo, que respeita
O murmurar do povo, e a phantasia
Do
filho, que casar-se naõ queria:
+CXXIII.+
Tirar Ignez ao Mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso;

Crendo co'o sangue só da morte indina,
Matar do firme amor o
fogo acceso.
Qual furor consentio, que a espada fina,
Que pôde
sustentar o grande peso
Do Furor Mauro, fosse alevantada
Contra
huma fraca dama delicada!
+CXXIIII.+
Traziam-na os horrificos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade,

Mas o povo com falsas e ferozes
Razões á morte crua o persuade.

Ella com tristes e piedosas vozes,
Sahidas só da mágoa, e saudade

Do seu Principe, e filhos, que deixava,
Que mais que a propria morte
a magoava:
+CXXV.+
Para o Ceo crystallino alevantado
Com lagrimas os olhos piedosos;

Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Hum dos duros ministros
rigorosos:
E despois nos meninos attentando,
Que taõ queridos
tinha, e taõ mimosos,
Cuja orphandade como mãi temia,
Para o avô
cruel assi dizia:
+CXXVI.+
Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento;
E
nas aves agrestes, que sómente
Nas rapinas aerias tem o intento;

Com pequenas crianças vio a gente,
Terem taõ piedoso sentimento,

Como co'a mãi de Nino já mostráram,
E co'os irmãos que Roma
edificáram:
+CXXVII.+

Ó tu, que t[~e]es de humano o gesto, e o peito,
(Se de humano he
matar h[~u]a donzella
Fraca, e sem força, só por ter sujeito
O
coraçaõ a quem soube vencella)
A estas criancinhas tem respeito,

Pois o naõ t[~e]es á morte escura della:
Mova-te a piedade sua, e
minha,
Pois te naõ move a culpa que naõ tinha.
+CXXVIII.+
E se vencendo a Maura resistencia
A morte sabes dar com fogo, e
ferro;
Sabe tambem dar vida com clemencia
A quem para perdê-la
naõ fez erro.
Mas se to assi merece esta innocencia,
Põe-me em
perpétuo e misero desterro,
Na Scythia fria, ou lá na Libya ardente,

Onde em lagrimas viva eternamente.
+CXXIX.+
Põe-me onde se use toda a feridade;
Entre leões, e tigres; e verei
Se
nelles achar posso a piedade
Que entre peitos humaos naõ achei.

Alli co'o amor intrinseco, e vontade,
Naquelle por quem mouro,
criarei
Estas reliquias suas que aqui viste,
Que refrigerio sejam da
mãi triste.
+CXXX.+
Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magôam;

Mas o pertinaz povo, e seu destino,
Que desta sorte o quiz, lhe naõ
perdôam.
Arrancam das espadas de aço fino,
Os que por bom tal
feito alli pregôam.
Contra h[~u]a dama, ó peitos carniceiros,

Ferozes vos mostrais, e Cavalleiros?
+CXXXI.+
Qual contra a linda moça Policena,
Consolaçaõ extrema da mãi velha,

Porque á sombra de Achilles a condena,
Co'o ferro o duro Pyrrho
se aparelha:
Mas ella os olhos, com que o ar serena,
(Bem como

paciente e mansa ovelha)
Na misera mãi
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